Antes mesmo da escalada da guerra comercial entre Brasil e Estados Unidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defende o uso de moedas locais no comércio entre países ou a criação de uma nova opção para, assim, diminuir a dependência global do dólar. Na prática, porém, o Brasil segue usando a moeda dos EUA na grande maioria de suas trocas comerciais, mesmo no governo Lula.
Mesmo após o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciar em 9 de julho a imposição de uma tarifa de 50% sobre as exportações brasileiras, Lula continuou defendendo que os Brics devem buscar alternativas ao dólar, seja por meio de uma nova moeda ou a preferência às moedas dos países envolvidos nas transações comerciais.
Em 10 de julho, um dia após do anúncio do “tarifaço”, o petista afirmou que o bloco cansou de ser “subordinado ao Norte” e confirmou que o Brics cogita desenvolver uma moeda própria para “fazer comércio sem precisar usar o dólar”.
“Queremos ter independência nas nossas políticas, queremos fazer comércio mais livre e as coisas estão acontecendo de forma maravilhosa”, disse Lula em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo.
Tarifaço de Trump e reações no Brasil
- Trump tem ameaçado o mundo com um tarifaço, desde o início do atual mandato. Recentemente, o republicano tem focado no Brics e no Brasil por causa das políticas multilaterais.
- Em 9 de julho, o presidente dos EUA anunciou a taxação de 50% aos produtos brasileiros, a partir de 1º de agosto. Ele pediu o fim do que considera uma “caça às bruxas” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Brasil.
- Lula informou que a resposta brasileira à taxação será por meio da Lei de Reciprocidade Econômica, regulamentado por decreto que também criou o comitê presidido pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB).
- A esquerda tem atribuído a sobretaxa à atuação da família Bolsonaro, em especial do deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), nos EUA. Por lá, o clã busca sanções contra o STF e o governo brasileiro.
- Por outro lado, os apoiadores do ex-presidente alegam que as tarifas unilaterais de Trump foram direcionadas às ações do ministro Alexandre de Moraes nos processos contra Bolsonaro.
Dólar é principal moeda usada pelo Brasil em seus negócios de importação e exportação
Apesar do interesse do presidente, a maior parte das exportações e importações brasileiras ainda é feita em dólar. Só em 2024, US$ 323,2 bilhões foram comercializados em exportações, enquanto US$ 211 bilhões foram usados nas importações.
As informações fazem parte do levantamento sobre exportação e importação por moeda declarada, elaborado pela Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Nos últimos cinco anos, quase todas das exportações foram feitas em dólar (95,5%). Do lado das importações, as compras com a moeda norte-americana chegaram a 81,7% no mesmo período.
Logo atrás do dólar, o euro se mostra como a segunda moeda mais utilizada na corrente de comércio brasileira, segundo dados da Secex. Conforme o levantamento, as importações (9,06%) em euro são maiores do que as exportações (2,71%).
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Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump
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Lula lançou o Bolsa Família em 2003
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Lula lançou o Bolsa Família em 2003
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Lula lançou plataforma para cadastrar influenciadores; deputado quer CPI para investigar influenciadores
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Confira a participação das moedas nas exportações brasileiras:
- Dólar: 95,48%
- Euro: 2,71%
- Real: 1,48%
- Libra esterlina: 0,12%
- Iene: 0,08%
- Outras moedas: 0,13%
Veja a variação no caso de importações brasileiras:
- Dólar: 81,69%
- Euro: 9,06%
- Real: 6,41%
- Iene: 0,71%
- Renminbi Chinês: 0,42%
- Outras moedas: 1,71%
Como o dólar se tornou a principal moeda do mundo?
Desde 1994, com a assinatura do Acordo de Bretton Woods, o dólar é usado como referência no comércio exterior, mesmo em operações que não envolvem os EUA. De lá para cá, a moeda se consolidou como o principal meio de precificação e reserva do mundo.
O tratado foi firmado em um cenário pós Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de criar um sistema financeiro e monetário internacional estável e, assim, superar o cenário de instabilidade provocado pelo conflito.
Para garantir a estabilidade da economia global, foram criados o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Além disso, o acordo definiu o dólar como moeda de referência e estabeleceu taxas de câmbio fixas entre as moedas.
O que dizem os especialistas
O economista Robson Gonçalves, professor de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV), não vê equívocos na declaração do presidente Lula de ampliar o uso de moedas alternativas ao dólar no comércio externo.
De acordo com ele, o movimento é semelhante ao processo que levou à criação do euro, iniciado a partir de uma sinalização política dos países que integram a União Europeia e desenvolvido ao longo de duas décadas.
“Não tem nada de errado com o fato de que, por enquanto, é só uma fala [de Lula]”, frisa. Para o economista, o Brasil e os países dos Brics estão em uma etapa de estudos e discursos sobre o tema, o que considera “natural”.
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Gonçalves acredita que a mais recente sanção comercial imposta pelos Estados Unidos às exportações brasileiras, encomendada pelo presidente Donald Trump, empurra o país “ainda mais na direção de buscar alternativas ao dólar”.
“Se os Estados Unidos vão ser um destino menos importante para as nossas exportações, por que a gente vai continuar ancorando os contratos em dólar? O ingrediente de política externa que nos empurra nessa direção [desdolarização] foi acrescentado por esse absurdo dessa tarifa do Trump”, afirma ele.
Apesar das intenções do governo brasileiro, Gonçalves pondera que tanto o Brasil quanto os Brics “não estão sendo agressivos” na condução dessa política de desdolarização, mas sim explorando possibilidades.
Ele argumenta que triangular moedas com o dólar “impõe custos de transação desnecessários e um risco de flutuação cambial dos dois lados do contrato”. “Se passa a assinar contratos entre empresas de dois países na moeda desses dois países, a eficiência do contrato aumenta”, defende o professor, que diz que o dólar foi imposto na reunião de Bretton Woods.
Em um cenário global mais multipolar, Gonçalves avalia que: “Continuar usando a moeda americana é ineficiente do ponto de vista econômico e injustificado do ponto de vista geopolítico. Qual é o argumento econômico para que o dólar não deixe de ser o padrão no mundo multipolar? Não existe”.
Na avaliação de Jackson Campos, especialista em comércio exterior, a adoção de moedas locais no comércio internacional é tecnicamente possível, mas exige uma série de fatores para substituir o dólar como referência. Entre eles:
- Infraestrutura financeira adequada;
- Mecanismos claros de compensação entre moedas; e
- Confiança mútua entre os países envolvidos (até os respectivos bancos centrais).
Campos diz que os principais desafios para a transição estão relacionados à volatilidade cambial, à falta de liquidez fora do país e à ausência de sistemas internacionais que garantam segurança e previsibilidade nas transações. “O mercado global ainda opera com forte preferência por moedas que oferecem menor risco e maior aceitação”, ressalta.
Ainda assim, ele acredita que ampliar o uso do real nas transações internacionais poderia trazer benefícios à economia brasileira. Segundo Campos, isso poderia reduzir a exposição ao dólar, diminuir custo com hedge (no jargão do mercado financeiro, estratégia usada para compensar investimentos de risco), fortalecer a posição do país nas negociações comerciais, além de incentivar o desenvolvimento de uma estrutura financeira mais conectada com parceiros estratégicos.
No caso de uma moeda comum no Mercosul, no entanto, Campos vê entraves significativos. Para ele, as diferenças fiscais e monetárias entre os países-membros do bloco tornam difícil uma integração mais profunda. “Por enquanto, parece mais uma pauta política do que um projeto com base técnica consolidada”, avalia.
Fábio Pereira de Andrade, professor de relações internacionais e economia da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), acredita que o presidente Lula “levou muito a sério” a proposta de ter uma moeda alternativa ao dólar.
“O presidente Lula parece que levou muito a sério, mais a sério do que outros membros do Brics, a proposta chinesa de ter uma moeda alternativa em relação ao dólar”, afirma ele, acrescentando que a China “flerta” com a ideia de se tornar a nova potência global.
Para o professor, o governo brasileiro adotou uma posição de defesa do Sul Global. “Me parece, para tentar ser gentil, que o governo brasileiro entrou numa defesa do Sul Global. Isso é uma posição histórica do presidente Lula e do PT, que levou a sério demais a possibilidade de substituição pacífica de moedas”, diz.
Apesar das dificuldades, Andrade considera que a transição para uma nova moeda de referência é “viável”, embora reconheça que o processo seria complexo. “A operacionalização da substituição do dólar por outra moeda é um processo que implicaria em substituição da hegemonia”, explica ele.
Conforme Andrade, a postura brasileira envolve riscos. “O Brasil deu o famoso passo à frente pelo amigo [China] e está correndo risco de forma desnecessária”, conclui.
[Metrópoles]
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