Caso Herzog: ato na Sé tem pedido de perdão do Estado e protesto contra anistia a Bolsonaro

[Editada por: Marcelo Negreiros]

Cinquenta anos depois da morte do jornalista Vladimir Herzog, seu assassinato nas dependências do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, foi lembrado com um ato inter-religioso “contra a violência e pela paz” na Catedral da Sé. Pela primeira vez um presidente da República em exercício – Geraldo Alckmin – esteve presente na celebração, bem como a presidente do Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.

A ministra pediu perdão: “Perdão a todos que tombaram e sofreram lutando pela liberdade no Brasil. Perdão pelos erros e omissões judiciais cometidos durante a ditadura. Eu peço perdão a Vladimir Herzog e sua família, a Paulo Ribeiro Bastos e sua família, a Rubens Paiva e a Miriam Leitão e a seus filhos, a José Dirceu, a Aldo Arantes, e José Genoino, a Paulo Vannuchi, a João Vicente Goulart e a tantos outros homens e mulheres que sofreram com as torturas, as mortes, os desaparecimentos forçados e o exílio”.

A ministra foi interrompida por aplausos e gritos “sem anistia”. E continuou: “Eu peço, enfim, perdão à sociedade brasileira e à história do País pelos equívocos judiciários cometidos pela Justiça Militar federal em detrimento da democracia e favoráveis ao regime autoritário”.

Em seguida, foi a vez de Alckmin falar, quase ao término da celebração. “Nem a mais covarde das mentiras, forjada pela mais vil das tiranias, foi capaz de apagar a verdade truculenta que se abatera sobre o País. Assim como na defesa da verdade, não houve lugar para a farsa do suicídio, da mesma forma, por amor à liberdade, jamais haverá lugar para o nosso esquecimento”, disse o presidente em exercício.

Alckmin prosseguiu, afirmando: “A memória de Vladimir Herzog segue viva e evoca em cada um de nós a promessa de defender os valores sagrados da vida, da liberdade e dos direitos humanos. Por isso, reafirmo aqui, em nome do presidente Lula e em meu próprio, a nossa promessa, e muito mais que promessa, o nosso inabalável compromisso e perseverante empenho na defesa da verdade, da justiça e da democracia. Viva a aliança da fé, das religiões, pela dignidade humana”.

Já na chegada à igreja, as falas das mais importantes autoridades presentes mostravam o impacto do ato. “A morte de Vladimir Herzog foi o resultado do extremismo do Estado que, ao em vez de proteger os cidadãos, os perseguia e os matava. Por isso, a importância de se fortalecer a Justiça, a democracia e as liberdades”, afirmou Alckmin.

A ministra do STM também se manifestou ao chegar. “Esse ato de hoje significa que estamos aqui para honrar a memória de Vladimir Herzog, que não podemos permitir que a ditadura retorne porque lamentavelmente o autoritarismo nos assombra, mesmo quando nós imaginávamos que a ditadura já estava consolidada no País”, disse.

Eram 19h05 quando um coral atravessou a catedral lotada, onde uma multidão, recebida com flores brancas na entrada, aglomerava-se em seu interior. Ele se postou na lateral da catedral para iniciar a celebração 20 minutos depois. Cantou a Missa Criolla, do compositor argentino Ariel Ramirez, que homenageou duas religiosas alemãs, Elisabeth e Regina Brückner, que levavam escondidas comida a prisioneiros de um campo de concentração nazista.

Em meio ao canto do coral, um vídeo exibiu os nomes dos mortos pela ditadura militar (1964-1985). Seguiu-se um minuto de silêncio em memória de Vlado e de todos os mortos e desaparecidos do período pela violência do Estado até os dias de hoje. O silêncio foi rompido então pelos acordes da canção O Bêbado e o Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, executada por Cida Moreira e pelo coro.

Promovido pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Comissão Arns, o ato levou ao altar o cardeal arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer, o rabino Uri Alam, da Congregação Israelita Beth-El, e a pastora Anita Wright, filha de um dos religiosos que participaram há 50 anos do ato ecumênico original, o pastor Jaime Wright. O primeiro a falar foi o cardeal Scherer.

“Há 50 anos, aglomeravam-se nesta mesma igreja uma multidão que estava consternada e clamava por respeito, liberdade e democracia em razão da morte de Herzog, brutalmente torturado e assassinado pelo regime militar em razão de sua luta pelas liberdades democráticas e pelos direitos humanos”, afirmou o cardeal em sua fala aos presentes, antes que o hino nacional enchesse com seus acordes a nave principal da catedral.

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A d. Odilo coube a difícil tarefa de apascentar os espíritos dos presentes, uma tarefa que esteve nas mãos do eloquente d. Paulo Evaristo Arns, o carismático franciscano que conduziu a celebração naquele outubro de 1975. “Se estamos aqui sem medo é porque devemos isso a pessoas que pagaram um preço alto, não raro com suas vidas. Estamos aqui para que a convivência social seja livre de toda sorte de violência, de intolerância e injustiça”, concluiu.

Após a voz do cardeal, ressoou pelo recinto a mensagem do rabino. Há 50 anos anos, ali estivera Henri Sobel, e sua dicção inconfundível para testemunhar a violência que se abatera contra Herzog. “Dedico minha fala à elevação das almas de Vladimir Herzog, do cardeal Arns, do rabino Sobel e do pastor Wright e à memória de todos que foram assassinados durante a ditadura” afirmou Alam.

Para o pastor, a morte de Herzog foi o ponto de virada, o início do fim da ditadura no País. “Nos reunimos aqui para afirmar que aprendemos com o passado. Todo ser humano é criado à imagem de Deus. Torturar e matar diminuíram a presença de Deus. Quando o estado tortura e mata, morrem as vítimas e a crença na Justiça. Lembrar é resistir. Resistir é viver.” O rabino orou em hebraico e concluiu. “Nós agradecemos por estarmos vivos, por termos resistido.”

Por fim, foi a vez de Anita. Seu pai, o pastor Wright, não estava ali por acaso em 1975. Seu irmão – e tio de Anita – era o ex-deputado Paulo Stuart Wright, dirigente da Ação Popular, de origem na esquerda católica que se opunha ao regime e foi proscrita pela ditadura.

Paulo fora sequestrado em 1973 por homens do mesmo DOI do 2.º Exército, que dois anos mais tarde matariam Herzog. E desapareceu em meio à nacht und nebel, à noite e à neblina daqueles anos.

“Estamos aqui reunidos para celebrar a memória de Vladimir Herzog e de todas as vítimas da ditadura militar”, afirmou a pastora. Ela lembrou a morte e o desaparecimento de seu tio. E a luta de outros familiares de vítimas da ditadura. “Estamos aqui para reconhecer a importância de um ato ecumênico feito há 50 anos no processo de retomada da democracia.”

Ela completou: “A ditadura militar fez que andássemos pelo vale da sombra da morte, mas a segurança de ter Deus nosso pastor ao nosso lado nos deu coragem, nos guiando e consolando com sua vara e o seu cajado. Há 50 anos, Deus preparou neste mesmo lugar uma mesa para mais de 8 mil pessoas na presença do inimigo que cercava a Praça da Sé”.

Depois, foram homenageadas as pessoas que há 50 anos estiveram no ato e que neste sábado também compareceram à catedral enquanto a multidão presente gritava “sem anistia” antes que um vídeo com a fala do jornalista Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas, fosse exibido. E foi aplaudido o juiz federal aposentado Márcio José de Moraes, que, em 1978, condenou a União pela morte do jornalista.

Na sequência, em um vídeo, a atriz Fernanda Montenegro leu a carta escrita por Zora Herzog, mãe de Vlado, para o juiz Moraes. “Meu filho não voltará, mas seu bom nome não ficará manchado. Se seu desaparecimento não foi em vão para a história do País, para mim sua perda é definitiva, minha dor não tem consolo.”

O esquema de policiamento na Praça da Sé estava lá para proteger as autoridades e as pessoas que foram ao ato ecumênico, em contraste com os 172 agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) que estiveram ali há 50 anos para vigiar, controlar, fichar e prender, se fosse o caso, os participantes da celebração de então, que contara com o cardeal arcebispo d. Paulo Evaristo Arns, o pastor Wright e o rabino Sobel.

Seguiram-se outras falas até que chegou a vez de Ivo Herzog, o filho do jornalista, que tinha nove anos quando o pai foi assassinado. Ivo agradeceu a presença de Alckmin, com todo o simbolismo que isso carregava, e o fato de o presidente em exercício estar ali. Ao seu lado estava André Herzog, seu irmão. “Viva a paz, viva a Justiça, viva a liberdade, viva Vladimir Herzog, viva a democracia brasileira”, concluiu.

No fim, o ato virou um protesto contra a anistia. Foi quando o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, pela comissão Arns, se pronunciou: “Hoje vivemos sob a ameaça da anistia. Graças a Deus, ainda estamos vivos. Os direitos humanos não podem ser violentados”.

Até que a ministra Elizabeth tomou a palavra com seu pedido de perdão. Foi aplaudida. Última fala naquele dia, foi também a mais esperada: a do presidente em exercício Alckmin, símbolo de que o Estado brasileiro se dissociava do crime cometido em seu nome no passado. “Vivam todos os que lutaram pela nossa liberdade. Viva Herzog! Viva a democracia! Viva o Brasil!”, afirmou Alckmin. O ato foi encerrado às 21h40.

[Por: Estadão Conteúdo]

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