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um laboratório silencioso, entre fileiras de gaiolas metálicas, um camundongo branco é pesado e catalogado. Ele nunca verá o Sol nem deixará a jaula. Foi criado para um único propósito: testar se uma nova substância é segura para humanos. Nasceu para morrer.
O seu corpo pequeno e anônimo move uma engrenagem que sustenta a ciência há séculos. Todos os dias, animais participam de estudos que antecedem a chegada de medicamentos, vacinas, cosméticos e agrotóxicos ao mercado.
Como testar se determinado produto causa câncer? Expondo camundongos a essa substância por toda a vida. Como verificar a compatibilidade de implantes? Colocando próteses e válvulas cardíacas em porcos. E a eficácia de uma vacina? Imunizando macacos – e observando sua resistência ao patógeno.
Hoje, estima-se que 115 milhões de animais sejam usados todos os anos em atividades científicas pelo mundo. Mas, afinal: até que ponto é aceitável submeter esses seres a procedimentos que, por vezes, não seriam moralmente toleráveis em humanos?
Não só: testes em animais nem sempre reproduzem com precisão o funcionamento do corpo humano. Mesmo compartilhando semelhanças biológicas, as diferenças entre espécies são profundas. “O homem não é um rato de 70 quilos”, disse ao New York Times Thomas Hartung, toxicologista da Universidade Johns Hopkins.
Em 2004, a FDA (a Anvisa dos EUA) estimou que 92% dos fármacos que passam da fase pré-clínica (que incluem animais) não chegam ao mercado devido à falta de eficácia e problemas de segurança nos testes com os bichos. Mesmo com esforços para melhorar as metodologias, a taxa de falha saltou para 96%.
“É possível que a pesquisa com animais seja, no geral, mais custosa e prejudicial do que benéfica para a saúde humana”, escreveu a neurologista Aysha Akhtar, membro do Centro de Ética Animal de Oxford, em um artigo sobre o tema (1). “Seria melhor direcionar esses recursos para o desenvolvimento de tecnologias mais precisas e baseadas no ser humano.”
É em meio a esse debate ético e científico que se encaixam os chamados métodos alternativos, ou New Approach Methodologies (NAMs): técnicas que buscam reproduzir experimentos tradicionais sem animais, com maior precisão e menor sofrimento.
A ideia não é nova. Em 1959, os zoólogos William Russell e Rex Burch formularam as bases para esse movimento, num conceito batizado de “3Rs”: Replacement (substituição de animais sempre que possível), Reduction (uso do menor número necessário) e Refinement (aperfeiçoamento dos métodos para minimizar dor e estresse). Mas foi só nas últimas décadas que o avanço tecnológico permitiu às NAMs ganhar espaço dentro dos laboratórios.
Em julho, o presidente Lula sancionou uma lei que proíbe o uso de animais em testes para cosméticos, perfumes e produtos de higiene. É um setor com estratégias interessantes de substituição (falaremos sobre elas em breve). Mas será que outras áreas estão prontas para abandonar os bichinhos? É o que veremos nos próximos parágrafos.

Do começo
Na Grécia Antiga, Aristóteles observava diferentes espécies em busca de padrões que explicassem o funcionamento do corpo. Isso ajudou a formar as bases da anatomia, mas também consolidou uma hierarquia entre os seres vivos: para ele, os animais não tinham logos (a razão) e, portanto, existiriam para servir aos humanos.
Durante o Império Romano, o médico Galeno de Pérgamo ampliou esse legado. Ele dissecava macacos e porcos ainda vivos para estudar o sistema nervoso e a circulação.
Com a expansão do cristianismo, o foco do conhecimento mudou. O estudo da natureza deu lugar à teologia, e a dissecação animal passou a ser vista com desconfiança moral.
Na chamada Idade de Ouro Islâmica (entre os séculos 8 e 13), médicos, como Avenzoar e Ibn al-Nafis, retomaram o estudo da anatomia. Nesse período, também surgiram os primeiros testes de toxicidade: substâncias eram administradas a macacos e outros animais para medir seus efeitos antes do uso em humanos.
No Renascimento, a curiosidade sobre o corpo humano voltou ao centro das ciências. Em 1543, Andreas Vesalius publicou De Humani Corporis Fabrica, obra que revolucionou a anatomia ao se basear na observação direta de cadáveres e animais. Pouco depois, William Harvey demonstrou, por meio de experimentos em bichos, que o sangue circulava continuamente pelo corpo, impulsionado pelo coração.
A partir do século 17, o debate filosófico começou a influenciar a ética da experimentação. O filósofo René Descartes via os animais como “autômatos” – máquinas sem alma ou sensibilidade –, ideia que serviu para justificar práticas cruéis. Outros pensadores, como Baruch Espinosa e John Locke, discordaram: reconheciam que os animais sentiam dor e mereciam consideração moral.
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Em 1789, o filósofo inglês Jeremy Bentham formulou uma das reflexões mais célebres sobre o tema: “A questão não é se eles pensam ou falam. A questão é: eles sofrem?”.
A partir do século 19, a pesquisa médica passou a depender cada vez mais de testes com animais – um movimento reforçado pela publicação de A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin, que evidenciou a proximidade evolutiva entre humanos e outras espécies.
Poucos anos depois, o médico francês Claude Bernard consolidou o uso sistemático de animais em laboratório. Em meio a epidemias de tuberculose, tifo e difteria, Bernard afirmava que curas humanas poderiam ser descobertas em outras espécies. Para isso, dissecava cães vivos – inclusive o da própria casa. “O fisiologista não é um homem do mundo”, escreveu. “Não ouve os gritos dos animais, não vê o sangue que se alastra. Só vê a ideia.”
O uso dos animais por Bernard e outros cientistas com pensamento similar provocaram repulsa pública e deram origem às primeiras leis de proteção animal, como o Cruelty to Animals Act, aprovado no Reino Unido em 1876. Anos depois, Louis Pasteur – um dos fundadores da microbiologia moderna – passou a empregar anestesia e introduziu o chamado “ponto final humanitário”, que consiste em sacrificar o animal quando o sofrimento se torna extremo.
Hoje, há padrões internacionais que norteiam as legislações de cada país para os testes em animais. O conceito de “animal”, vale dizer, varia. Em geral, apenas vertebrados são protegidos (insetos, por exemplo, ficam de fora).
O Brasil tem um dos sistemas mais organizados da América Latina para controlar a experimentação científica com animais, resultado de uma regulação que começou a se firmar há pouco mais de 15 anos.

Quintal de casa
Por aqui, a Lei de Crimes Ambientais, de 1998, já previa a punição para quem realizasse testes cruéis e dolorosos em animais vivos (caso houvesse métodos alternativos). Mas o grande marco nessa história foi a Lei Arouca, de 2008. Ela definiu princípios éticos, exigiu condições mínimas de bem-estar e restringiu os experimentos a instituições autorizadas.
Dessa lei nasceram os dois pilares do atual sistema: o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) e as Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas).
O Concea, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), é responsável por definir as regras sobre bem-estar, manejo, espécies permitidas, infraestrutura e métodos alternativos.
Já as Ceuas analisam cada projeto de pesquisa de universidades, laboratórios e empresas: quantos animais serão usados, se esse número tem justificativa, quais procedimentos serão aplicados e quais as medidas para reduzir dor e sofrimento – além de verificar se há alternativas disponíveis.
Segundo o Concea, entre 2019 e 2023 foram utilizados 11,39 milhões de animais em atividades científicas e educacionais no Brasil. Do total, 96% estavam ligados a projetos de pesquisa e 4% a práticas de ensino.
Nas pesquisas brasileiras, aves (33,7%), peixes (25,9%) e roedores (17,7%) somam quase 80% dos animais usados. No ensino, predominam as aves (52%), seguidas de grandes ruminantes (13%) e peixes (10%).
As aves (como galinhas domésticas e codornas japonesas) lideram por refletirem o perfil das atividades científicas e educacionais, que incluem aulas práticas e pesquisas agropecuárias. Muitas são apenas observadas, mas ainda assim entram na conta. Elas são usadas em estudos de reprodução, nutrição e bem-estar. Seus ovos servem como modelo clássico para observar o desenvolvimento de órgãos em tempo real.
Os peixes estão em segundo lugar e são empregados em testes de poluição, toxicologia e genética. O peixe-zebra é usado pelos seus embriões transparentes, que facilitam observar, no microscópio, a formação de órgãos e sistemas. A tilápia, por sua vez, aparece em pesquisas sobre regeneração de pele e biomateriais.
Roedores como camundongos e ratos pegam o bronze – mas, no âmbito global, lideram as pesquisas. O tamanho pequeno, o fácil manejo e a reprodução rápida os tornam ideais para uma gama de pesquisas biomédicas, farmacológicas e neurológicas.
Entre os grandes mamíferos, bovinos, ovinos e equinos integram pesquisas em reprodução e imunologia. Cavalos são essenciais para soros antiofídicos, antitetânicos e antirrábicos em instituições como o Butantan e a Fiocruz. São animais com muito sangue (cerca de 40 litros), que toleram pequenas doses de toxinas e produzem grandes quantidades de anticorpos, o que permite obter plasma suficiente e seguro para a fabricação desses imunizantes.
Antes de chegarem aos laboratórios, a maioria dos bichos passa por biotérios. Trata-se de centros ligados a universidades, institutos ou empresas que criam e fornecem espécies padronizadas para pesquisa.
Nos biotérios, tudo é controlado: temperatura, umidade, ruído, alimentação – e, claro, a linhagem genética dos bichinhos. O objetivo é reduzir interferências externas e garantir resultados reprodutíveis.
Os testes com animais ocorrem, em geral, na fase pré-clínica de um estudo. Essa etapa vem depois de anos de pesquisa básica e laboratorial, quando cientistas identificam, por exemplo, uma molécula promissora e realizam testes in vitro (em células e tecidos) ou ex vivo (em órgãos mantidos fora do corpo) para avaliar se ela é segura e tem potencial terapêutico.
Quando os resultados são promissores, passa-se para os modelos animais, que permitem observar a ação de determinada substância no corpo. Se o composto se mostra seguro e eficaz, o estudo avança para a fase clínica, feita com voluntários humanos.

Indispensáveis, por ora
Como dissemos lá atrás, o setor de cosméticos, voltado para efeitos locais como irritação da pele e dos olhos, é o que mais tem conseguido substituir esses testes por métodos alternativos. Mas a verdade é que ele ainda é uma exceção dentro da ciência.
Animais ainda são amplamente usados em pesquisas farmacêuticas, de vacinas, veterinárias, químicas, alimentícias e agrícolas. Isso porque muitos fenômenos biológicos não podem ser reproduzidos integralmente fora de um ser vivo. Processos como o caminho de uma substância dentro do corpo (absorção, distribuição, metabolismo e excreção) envolvem o trabalho conjunto de órgãos e sistemas.
Pense nas variáveis envolvidas ao desenvolver um remédio. Ele será absorvido no intestino, processado no fígado e eliminado pelos rins. Também é preciso considerar a ação de hormônios, a idade do paciente, seus hábitos alimentares e a composição genética. Nenhum modelo computacional ou cultura de células reproduz todas essas interações – ainda.
Certos efeitos também dependem do tempo e do funcionamento conjunto do corpo, como inflamações, respostas imunes ou alterações metabólicas. Por isso, áreas como farmacologia e segurança química ainda recorrem a animais para prever como uma substância afeta o organismo inteiro.
Agora, se ainda não é possível abdicar dos testes, então como garantir o bem-estar dos bichos?
A legislação brasileira determina que o sofrimento deve ser minimizado sempre que possível. Procedimentos invasivos exigem anestesia e monitoramento constante. Cada protocolo deve prever o momento do sacrifício para evitarsofrimento irreversível.
No laboratório, as condições ideais envolvem temperatura e iluminação controladas, alimentação adequada e, quando possível, interação social. “Nenhum animal nasceu para viver em uma caixa, mas há formas de amenizar o estresse”, diz o toxicologista Octavio Presgrave, coordenador do Centro Brasileiro para a Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM).
“Cada espécie tem suas preferências: camundongos recebem tubos de PVC e papel para rasgar; coelhos ganham feno; primatas brincam com bolas com furos e cordas para se pendurarem.” É uma preocupação moral e científica: animais doentes, estressados ou assustados produzem resultados menos confiáveis.
Ainda assim, entidades de proteção animal e parte da comunidade científica questionam esse retrato, já que a dor é muitas vezes inevitável e nem sempre mensurável.
Durante décadas, críticas ao modo como lidamos com os animais foram tratadas como “reações emocionais”, sem base teórica. Isso começou a mudar em 1975, com o livro Libertação Animal, do filósofo australiano Peter Singer. A obra introduziu o conceito de “especismo” – a ideia de que discriminar por espécie é tão injusto quanto por raça ou gênero.
Singer argumentou que, se um ser sente dor, esse sofrimento deve importar moralmente. Seu trabalho ajudou a transformar o debate sobre bem-estar animal, antes restrito à compaixão, em uma discussão ética e política. E deu gás para um sem-fim de ações de ativismo.
No Brasil, o caso mais emblemático aconteceu em 2013, no Instituto Royal, em São Roque (SP). O laboratório, que recebia recursos públicos para pesquisas toxicológicas com cães, coelhos e roedores, virou alvo de investigação do Ministério Público no ano anterior após a denúncia de um ex-funcionário sobre as condições dos animais que viviam ali.
Na madrugada do dia 17 de outubro, manifestantes invadiram o prédio da Royal e retiraram 178 cachorros beagle e alguns coelhos. Roedores usados em experimentos, porém, ficaram para trás.
A repercussão foi nacional. Na Câmara, criou-se uma comissão externa para analisar o episódio. Relatos colhidos por parlamentares e por entidades protetoras de animais indicavam canis apertados, pouco contato com luz solar e cães estressados.
O caso, porém, não resultou em ações penais. Para representantes do Concea, o instituto seguia normas oficiais, e a invasão prejudicou pesquisas consideradas relevantes, que foram transferidas para o exterior.
Para setores da proteção animal, o episódio marcou uma virada social ao expor a experimentação com cães e mobilizar a opinião pública. O que nos leva ao próximo capítulo dessa história: os métodos alternativos. Vamos entender como eles funcionam – e onde já é possível usá-los.

Coelho, descansar
Todo método alternativo passa por um processo de validação que leva no mínimo dois anos e envolve várias etapas, da concepção em laboratório ao reconhecimento de órgãos internacionais.
Tudo começa quando um grupo de pesquisa desenvolve o novo método. A partir daí, o BraCVAM coordena um estudo interlaboratorial, com apoio da Rede Nacional de Métodos Alternativos (Renama), ligada ao MCTI. O objetivo é verificar se o método funciona e se outros laboratórios conseguem reproduzir os mesmos resultados.
Feita a coleta de evidências sólidas, o método passa pelo crivo de órgãos regulatórios nacionais, como a Anvisa. Só então pode ser submetido à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que define as diretrizes internacionais para esses ensaios.
Se tudo estiver nos trinques, ele entra no acordo de Mutual Acceptance of Data, que garante o reconhecimento mútuo dos resultados entre os países signatários (Brasil incluso). Ele serve para evitar testes repetidos – e acelerar a substituição de animais.
Entre as empresas de cosméticos que já adotam substitutos está o grupo L’Oréal, que produz no Brasil a pele reconstruída da Episkin, uma de suas empresas.
Em setembro, a Super visitou o Centro de Pesquisa e Inovação da L’Oréal na Ilha de Bom Jesus, no Rio de Janeiro. Lá, conhecemos o tecido: uma pele humana cultivada em laboratório a partir de fragmentos descartados de cirurgias plásticas, com consentimento dos pacientes.
Em um mês, o material adquire as quatro camadas da epiderme. Após ser enviada aos usuários, dura apenas uma semana, exigindo transporte rápido e armazenamento rigoroso.

A OCDE reconhece a pele reconstruída como método oficial para testes de irritação e corrosão cutânea. A da Episkin foi uma das primeiras a serem validadas e comercializadas. Hoje, a empresa produz mais de 100 mil amostras por ano no mundo.
Historicamente, os testes eram feitos em coelhos. Raspava-se o pelo do animal para aplicar a substância e observar se a pele ficava vermelha. “Era subjetivo e, eticamente, problemático”, diz Vanja Dakic, gerente de métodos alternativos da Episkin Brasil. Nos testes oculares, os produtos eram diretamente aplicados nos olhos dos bichos – que, ao final das pesquisas, eram sacrificados.
A Episkin também fabrica modelos de córnea, usados em testes de colírios, protetores solares e antibióticos. Há ainda versões, na sede na França, para reconstruir tecidos orais, gengivais e vaginais, além de peles com diferentes pigmentações e versões que incorporam células do sistema imunológico.

Admirável Chip Novo
Os tecidos reconstruídos, sejam da Episkin, sejam de outras marcas, já são aplicados por outros setores além da cosmética, como os de brinquedos, dispositivos médicos e agroquímicos. Mas existem outros métodos alternativos, que tentam deslanchar em áreas ainda mais complexas, como a farmacologia.
Entre eles estão os órgãos em chip: microdispositivos transparentes, do tamanho de uma lâmina de microscópio, que simulam tecidos humanos e a circulação sanguínea, permitindo observar reações em tempo real.
O nome é pela mera semelhança de formato – eles não tem nenhum componente eletrônico ou Windows instalado. Mas, afinal, para que servem?
Nos testes tradicionais em laboratório, as células são cultivadas em placas estáticas, dentro de um líquido que não se move. Nesse ambiente paradão, as trocas entre as células são bem mais lentas.
Já nos órgãos em chip, o meio líquido circula por microcanais, imitando o fluxo sanguíneo. Esse movimento constante melhora a oxigenação e a troca de sinais químicos entre as células, o que faz com que elas se comportem de forma muito mais próxima da realidade humana.
“É como sair da internet discada e começar a usar banda larga”, explica Ana Carolina Figueira, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio).
Esses chips formam tecidos com funções específicas. No LNBio, pesquisadores desenvolvem modelos para testar toxicidade e estudar doenças. “Fizemos um chip com pele, intestino e fígado, em parceria com a Natura. Assim, é possível testar substâncias aplicadas na pele ou ingeridas e observar, nos minifígados, os efeitos metabólicos e tóxicos.” Cada chip contém cerca de 20 mil microfígados mantidos em condições controladas dentro de uma estufa.
Os desafios ainda são grandes. Cada tipo celular tem exigências de cultivo diferentes, e integrá-los no mesmo meio é difícil. “Um fígado dura 35 dias; uma pele, dez. É preciso equilibrar os tempos experimentais”, diz Figueira. Mesmo assim, os sistemas já permitem reproduzir doenças. “Combinamos tecido adiposo inflamado e fígado e obtivemos um modelo de esteatose hepática – a famosa gordura no fígado. As células inflamaram do mesmo jeito que observamos em pacientes.”

Apesar do potencial, a tecnologia ainda atravessa a fase de transição entre o laboratório e a indústria. “Hoje, o grande desafio é padronizar os ensaios e garantir que laboratórios diferentes obtenham os mesmos resultados. A Anvisa já aceita dados de órgãos em chip, desde que sejam bem documentados, mas ainda não há um guia regulatório específico”, conta Figueira. Na Europa, farmacêuticas como Sanofi, Roche, Pfizer e GlaxoSmithKline já incorporaram esses sistemas às rotinas de pesquisa.
O custo é outro entrave: um chip europeu custa cerca de 400 euros, e as bombas de circulação para imitar a corrente sanguínea, até 50 mil euros. “Mas grupos no Brasil já desenvolvem versões simplificadas por menos de dez reais”, diz a pesquisadora.
Octavio Presgrave, da BraCVAM, considera o método “o passo mais concreto rumo à substituição total de animais”. Segundo ele, ainda não é possível reunir todos os órgãos em um único chip, “mas é questão de tempo”.
“No futuro, será possível usar células de um indivíduo para montar versões miniaturizadas de seus órgãos e testar terapias personalizadas. Para quem não acompanha de perto, parece ficção científica.”
Mas, para que isso se concretize, é preciso validar e financiar novos métodos. No Brasil, o principal obstáculo é a falta de investimento contínuo.
“Não temos editais dedicados a essa área há anos. A ciência avança, mas os recursos não acompanham”, diz Marize Valadares, professora de toxicologia na Universidade Federal de Goiás (UFG). Essas tecnologias exigem laboratórios equipados, insumos caros e equipes multidisciplinares. O último edital específico, porém, foi lançado em 2016.
O principal fundo de fomento do MCTI ficou contigenciado por anos. A situação só mudou em 2022, “o que nos permitiu planejar editais contínuos. A expectativa é lançar ainda neste ano uma nova chamada para financiar projetos da Renama”, diz Thiago Moraes, coordenador-geral de Ciências da Saúde, Biotecnológicas e Agrárias do ministério.
Laboratórios ainda vivem ciclos de “financiamento em soluços” – breves períodos de apoio seguidos por longas paralisações. “A gente inicia um processo de validação – que leva tempo – e, quando o recurso acaba, tudo se perde. O estudo precisa começar do zero”, conta Valadares.
Mesmo com centros de excelência, o Brasil ainda depende de protocolos e insumos estrangeiros. Para Kristie Sullivan, do Institute for In Vitro Sciences (IIVS), “não se trata de uma barreira científica, e sim funcional e política”.
A aplicação das normas também é desigual. “Há resoluções que tornam obrigatórios métodos alternativos, mas alguns laboratórios ainda usam animais”, diz Paola Cappelletti, supervisora do laboratório de toxicologia do Banco de Células do Rio de Janeiro (BCRJ). “Falta recurso para fiscalização e divulgação para que a população saiba denunciar.”
Moraes reforça que o controle depende de articulação: “O ministério financia, o Concea normatiza, mas a fiscalização é compartilhada entre ministérios e comissões”.
No fim, o entrave é estrutural: falta investimento, coordenação e vontade política. “O Brasil tem um potencial enorme”, diz Luisa Braga, coordenadora do Concea. “Não faltam cabeças pensantes. O que falta é definição de verbas.”
Não estamos preparados para abandonar o uso de animais em testes científicos. Mas toda iniciativa para desenvolver métodos alternativos, via incentivo público ou privado, é mais do que bem-vinda. As pesquisas, afinal, podem se tornar mais precisas – e, para os animais, significa estar um passo mais próximo da tão merecida aposentadoria.
Fonte: (1) artigo “The flaws and human harms of animal experimentation”.
Agradecimentos: Ana Carolina Batista, supervisora do setor BioBanco do BCRJ; Antonio Monteiro, presidente, diretor-geral e curador do BCRJ; Ariadne Morais, diretora de Assuntos Regulatórios & Inovação da ABIHPEC; Cristina Garcia, diretora de Pesquisa Avançada e Comunicação Científica (América Latina) em Episkin; Letícia Morais Bueno de Camargo, biomédica e doutora em Farmacologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Pascale Mora, diretora de Comunicação Científica de P&D da L’Oréal.
[Por: Superinteressante]
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