Ex-presidente ameaçou explodir represa para barrar privatização e cogitou guerra entre PM e Exército

[Editada por: Marcelo Negreiros]

Cerca de 2.500 policiais militares de Minas Gerais desembarcaram na região do lago da represa de Furnas em Capitólio (MG) para realizar exercícios militares em outubro de 1999. Mais do que um treinamento de rotina, havia a ameaça que os policiais explodissem o dique da represa que abastecia a usina hidrelétrica pertencente ao governo federal. “Isso é coisa do governador”, disse o comandante da operação ao ser questionado pela imprensa que estava no local.

O governador era o ex-presidente da República Itamar Franco, então no PMDB. A guerra era contra o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a tentativa de privatizar Furnas. O raciocínio de Itamar era relativamente simples no papel: romper o dique desviaria as águas do Rio Grande para o rio São Francisco, desabastecendo a represa e prejudicando a capacidade da hidrelétrica de produzir energia. A ação deixaria a empresa menos lucrativa e atrativa para possíveis compradores.

“Furnas, enquanto governador for, só será privatizada com a intervenção das Forças Armadas. E assim mesmo eu quero ver”, desafiou Itamar à época, em uma das muitas vezes durante o seu governo que jogou com a possibilidade de um confronto entre o a PM mineira e o Exército.

O ex-deputado Sávio Souza Cruz, que foi secretário no governo Itamar, sugeriu ao chefe utilizar o uniforme de “comandante supremo da Polícia Militar”. “Ele gostou da ideia, mas depois a ala mais conservadora do governo o demoveu”, relata, quase três décadas, depois ao Estadão.

Segundo Souza Cruz, Itamar apostava que o mero movimento das tropas afastaria os investidores interessados. “Ele dizia: ‘Imagina que você é uma velhinha na Suíça e seu manager de investimento quer aportar dinheiro numa usina que fica em um Estado em que o governador é um ex-presidente e está ameaçando explodir a represa’. Não tinha jeito”, contou.

À época, a medida foi tratada como uma jogada de marketing do ex-presidente para marcar oposição contra FHC. A mágoa de Itamar era que seu ex-ministro da Fazenda recebeu o crédito pelo Plano Real. Ele também esperava suceder Fernando Henrique na eleição presidencial de 1998, mas o tucano aprovou no Congresso a possibilidade de reeleição, foi vitorioso no pleito e governou o País por mais quatro anos – Itamar chegou a anunciar sua candidatura, mas em uma convenção tumultuada os peemedebistas decidiram apoiar o candidato do PSDB.

Ex-repórter do Estadão, Ivana Moreira foi a enviada especial do jornal a Capitólio. Ela recorda que a mobilização das tropas durou entre três a quatro dias e terminou sem nenhuma explosão.

“Era tudo jogo de cena. Na verdade, era um treinamento de rotina da corporação, que já estava agendado, e ele [Itamar] aproveitou aquilo para reforçar a encenação, aumentando absurdamente o número de pessoas que participavam do treinamento para mandar um recado político”, avalia. “Eu escrevi em uma das matérias que era a República do Pão de Queijo contra o McDonald’s”, lembra Ivana, em referência à postura nacionalista do ex-presidente contra a entrada do capital estrangeiro em setores estratégicos da economia brasileira.

Furnas não foi o único embate entre Itamar e Fernando Henrique. Assim que assumiu o cargo, o governador declarou moratória da dívida de Minas Gerais, suspendendo os pagamentos dos débitos com a União e com bancos estrangeiros. A medida agravou a crise cambial que assolava o início do segundo mandato de FHC. Em resposta, o presidente interrompeu temporariamente os repasses federais a Minas Gerais.

“Itamar [Franco] corcoveando com o negócio da dívida, não quer pagar. O que quer, na verdade, é criar um caso político. Daqui a pouco vou ter que dar uma paulada firme nele”, escreveu Fernando Henrique Cardoso em seu diário no dia 3 de janeiro de 1999. No dia 11, voltou ao raciocínio. “Enfim, são circunstâncias com as quais vou ter que lidar nos próximos quatro anos. Itamar dará trabalho o tempo todo porque ele tem mágoa, despeito, quer voltar à Presidência”, concluiu o então presidente.

Itamar mobilizou novamente a polícia mineira em 2000, desta vez para proteger o Palácio da Liberdade, então sede do governo de Minas, de um suposto plano do governo tucano para invadir o Estado com tropas federais.

À época, o Movimento Sem-Terra (MST) ameaçava invadir uma fazenda da família de FHC em Buritis (MG). O presidente enviou o Exército para proteger a propriedade sob a justificativa de que Itamar não atendeu aos pedidos para que a PM agisse preventivamente para impedir uma eventual invasão.

O advogado José Murilo Procópio de Carvalho era conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e integrou uma comissão de juristas ao lado da hoje ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, para dar suporte jurídico à tentativa de impedir a privatização de Furnas.

“Fui recebido por Itamar no Palácio e me deparei com uma armação de tropas ali nos jardins do Palácio, com fuzis, armas expostas, jipe também, como se esse pessoal fosse para a guerra”, afirmou.

“O Itamar guardava o ódio no congelador”, acrescenta Carvalho, brincando com uma frase de Tancredo Neves sobre o ex-presidente.

A operação também sofria resistência no Congresso e o governo FHC não conseguiu vender a estatal. Furnas só foi privatizada no governo de Jair Bolsonaro (PL) com a venda da Eletrobrás, da qual era subsidiária – em 2024, foi incorporada ao patrimônio da empresa principal.

A campanha de Itamar contra as privatizações no governo Fernando Henrique influencia na política mineira até hoje. Ele propôs e conseguiu aprovar em 2001 a exigência de uma autorização da população, por meio de referendo, para que a Cemig e a Copasa sejam privatizadas. As empresas públicas atuam, respectivamente, nos setores de energia elétrica e saneamento em Minas Gerais.

O governador Romeu Zema (Novo) tenta reverter a necessidade de consultar a população. Inicialmente, ele propôs retirar o referendo para as duas empresas, mas diante da resistência dos deputados estaduais, aceitou modificar o texto para abarcar somente a privatização da Copasa – a Cemig, que Zema também queria privatizar, deve ter o controle repassado para o governo federal para abater parte da dívida do Estado com a União. A proposta de emenda à Constituição está pronta para ser votada em plenário.

[Por: Estadão Conteúdo]

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