[Editada por: Marcelo Negreiros]
Sempre me impressionaram as tiradas de espírito, esses relâmpagos de inteligências privilegiadas capazes de iluminar por um átimo a mesmice trivial da falta de originalidade. Entre os que já se foram, meu culto permanente a Paulo Francis, Delfim Neto e Roberto Campos. Entre os vivos, ouso mencionar Ruy Castro e Roberto Duailibi, para sorte minha, meu confrade na Academia Paulista de Letras.
São seres predestinados a produzirem aquilo que gostaríamos de gerar. Mas, lamentavelmente, sua quantidade se reduz de forma drástica e célere. Há muita coisa boa oferecida aos que não desistiram de ler. Mas aqueles instantes mágicos em que a síntese consegue explodir em infinitas potencialidades de reflexão, isso parece em extinção.
Sinal angustiante para os sensíveis. Parece que a inteligência está na UTI, para um planeta em agonia. Nossa crueldade para com a natureza atingiu também a capacidade humana de surpreender?
Todavia, já fomos muito melhores. Houve gerações de brasileiros que dominaram a arte da sedução, exercida mediante uso estratégico da palavra. Eram gerações inteiras de pensadores criativos. Um povo desmemoriado não cultiva os antepassados que mereceriam contar com altar votivo na lembrança coletiva. Nele, poderiam constar inúmeros patrícios, de qualidade indiscutível, de talento que parece não mais existir, ao menos em grau e intensidade então atingidos.
Revigoro minha crença na humanidade, ao perscrutar o que já se fez nesta mesma Terra de Santa Cruz, em tempos idos. Procuro visitar e revisitar existências hoje no ostracismo, porém que deveriam servir como faróis para a geração da ansiedade, ávida por um rumo e quase sempre incapaz de traduzir o que lhe vai n’alma.
Amizades como as desenvolvidas entre homens das letras de antigamente parecem não ganhar consistência e fincar raízes como ocorria então. Vejo na crônica dos tempos em que Machado criou a Academia Brasileira de Letras, sentimentos que a contemporaneidade sepultou. O que aconteceu com a amizade franca, aquela em que se escancaram lares e corações? Hoje as relações são superficiais. O mínimo de formalidade, o máximo de interesses. Meus contatos me servem para alguma coisa útil? Se não for assim, talvez seja melhor evitá-los e mirar outros espaços.
No convívio entre cultores da língua eram comuns os momentos mágicos em que nada mais precisaria ser dito, após a certeira flecha desfechada. Como aquele episódio em que Joaquim Nabuco anuncia a José Veríssimo a intenção de escrever um livro para relatar o seu regresso ao catolicismo.
José Veríssimo era um crítico sério e, por isso mesmo, áspero. Para que a amizade não influenciasse o rigor de seu juízo, punha-se em guarda contra seus próprios sentimentos e não hesitava a externar sua opinião. Franca, sincera e, por isso mesmo, capaz de ferir.
Ao anúncio de Joaquim Nabuco, o crítico responde:
– “Não, não o escreva. Até porque, ninguém sabe que você o abandonou…”.
Era assim José Veríssimo. A quem outro colega, Humberto de Campos, entregou um livro de versos que lhe mandara um amigo do Pará. Depois de alguns dias, Humberto pediu sua opinião sobre a poesia do poeta paraense. E Veríssimo não poupou sua chibata:
– “O poeta é difícil de perdoar. Que ele tivesse nascido burro, eu admito e posso desculpá-lo, porque não dependia dele. O que não lhe perdoo é ter casado com a filha de um dos sujeitos mais irritantes e desocupados que há no mundo. Dessa infelicidade, o culpado é ele. Ele tem aquele sogro porque quis!”.
Passagens de fino humor também habitaram a extensa obra de Sebastião Nery, há pouco falecido e estão no folclore relativo a Cláudio Salvador Lembo, também perda recente e de quem se dizia preferir perder o amigo a desperdiçar a oportunidade de uma piada nova.
Será que a escola tupiniquim, ao invés de fazer crianças e jovens decorarem informações inúteis, que as fazem abdicar de pensar, não poderia instruí-los a serem criativos? Ganharia o Brasil, ganharia o convívio, ganharia o gênero humano e talvez o mundo fosse mais interessante do que hoje parece. Principalmente ao se constatar a desgraça produzida exatamente por aqueles que deveriam se incumbir de tornar a vida do semelhante um pouco menos pior.
[Por: Estadão Conteúdo]
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