‘Governo Lula vacilou em gerenciar o caso crítico de acomodação para a Cop-30 em Belém’

[Editada por: Marcelo Negreiros]

A menos de cem dias da realização da COP-30 em Belém, no Pará, o Brasil enfrenta cenários interno e externo que tiram força da conferência deixando-a sob risco de ser esvaziada e terminar sem acordo. O panorama preocupa o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, que lamenta os “vacilos” do governo brasileiro na preparação do evento.

Para ele, o governo falhou “em gerenciar coisas críticas, como é o caso de acomodação” e está “falhando miseravelmente” por não estimular uma maior participação dos movimentos sociais no evento.

Marcio Astrini considera que a escolha de Belém como sede da COP-30 foi boa, porque tem o simbolismo de estar no meio da Amazônia e ajudou a jogar luz em problemas vividos pela comunidade local, como falta de saneamento. Mas insiste que faltou ação do poder público.

“Uma COP demanda um tipo de infraestrutura, uma ação governamental. Eu não sei como é que vai ficar o aeroporto, as comunicações, etc. Mas há uma crise hoje sobre acomodação. É um problema que o governo não tomou as rédeas da circunstância antes”, ressalta em entrevista à Coluna do Estadão.

Vinte e nove delegações assinaram carta sugerindo que o evento seja feito em outra cidade, se não houver garantia de acomodações adequadas e acessíveis aos participantes.

Tem países dizendo que não terão condições de enviar delegados, em razão dos valores. “Se o país reduz o número de delegados, não consegue acompanhar todos os temas e pode dizer que não reconhece o que foi acertado”, observa.

Já sobre a eventual ausência dos Estados Unidos na COP deste ano, Marcio Astrini avalia que é melhor o governo Donald Trump não enviar representantes.

“Os Estados Unidos saírem do acordo é realmente uma perda muito grande, porque é quem mais deve e é quem tem mais obrigação de ajudar. “O que o Trump vem fazer em uma conferência de clima, dado o que está fazendo no país dele? Ele está aniquilando todas as agências de pesquisa, retirando investimentos”.

O secretário-executivo do Observatório do Clima já acompanhou mais de uma dezena de COPs. Sobre as negociações, ele diz que é sempre difícil avançar e faz uma analogia: “Imagina que é uma grande reunião de condomínio, 196 nações defendendo os seus pontos de vista”.

“Quando você coloca nessa reunião de pessoas que já não se entendem, um fator como guerra, isso complica ainda mais a situação. Tem gente lá que vai sentar para negociar e eles estão tacando bomba um no outro. Essa que é a realidade, estão levantando tarifas, estão prejudicando a economia dos outros países”, complementa.

Nesta entrevista, o secretário-executivo do Observatório do Clima também fala sobre as promessas de financiamento, os recados e problemas de conferências anteriores e detalha qual é o legado que o Brasil tem obrigação de deixar ao sediar a COP-30.

A íntegra da entrevista irá ao ar na próxima quarta-feira, 6, no programa Dois Pontos, no portal e no canal do Estadão no Youtube.

Abaixo você pode conferir os principais trechos

Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima Foto: Daisy Serena/Observatório do Clima

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O Brasil sedia a COP-30 no momento em que o mundo vive um cenário de guerra, também com mudanças na política sobre o clima nos Estados Unidos, e sem a certeza de que haverá representante do governo Trump. Vai ter força essa COP?

Difícil, difícil. Porque as conferências de clima já têm uma dificuldade de entregar o que é necessário. Quando você olha para o que precisa ser feito, vê claramente que não foi feito. Porque os países vão para essas conferências olhando muito como é que eles se defendem, como colocam seus interesses acima de fazer um acordo ou de avançar a agenda. Imagina que é uma grande reunião de condomínio, 196 nações defendendo os seus pontos de vista. Difícil você avançar.

Quando você coloca nessa reunião de condomínio, de pessoas que já não se entendem, um fator como guerra, isso complica ainda mais a situação. Tem gente lá que vai sentar para negociar e eles estão tacando bomba um no outro. Essa que é a realidade, estão levantando tarifas, estão prejudicando a economia dos outros países.

É claro que o ambiente fica muito mais complicado. Mas nós temos uma circunstância em clima de que a gente não pode mais esperar, não temos mais o luxo do tempo.

Os Estados Unidos saírem do acordo é realmente uma perda muito grande, porque é quem mais deve e é quem tem mais obrigação de ajudar. E viraram as costas para o problema, não é a primeira vez. Trump já saiu do acordo de Paris, lá atrás, no primeiro mandato dele, está saindo de novo. Então, realmente a situação é muito complicada, mas é com essa situação complicada que a gente vai ter que ir para frente.

E tal qual uma reunião de condomínio, é marcada por barracos e muitas vezes, no final, não resolve nada?

É exatamente por isso a analogia mesmo. Um deles, e que me impactou muito, foi na última conferência de clima no Azerbaijão. A presidência no Azerbaijão completou a cartela do bingo de como não presidir uma conferência de clima. Do que não deve ser feito. Foi horroroso. E eu não acho que aquilo foi feito de forma aleatória. Foi proposital.

Um dos barracos foi exatamente na plenária final. Onde eles atropelaram a votação. Deram como aprovado pontos que estavam em aberto. E vários países na plenária final levantaram a mão e disseram: eu não concordo com isso.

Hoje a COP está em boas mãos, no Brasil. André Corrêa do Lago e a Ana Toni são pessoas extremamente respeitadas e comprometidas com a agenda. Então, esse é um ponto forte da conferência.

Você precisa ter um ambiente colaborativo para os países chegarem em acordos. Os Estados Unidos entram exatamente nessa conta. Tomara que não venham para a conferência de clima. Porque o que o Trump vem fazer em uma conferência de clima, dado que ele está fazendo no país dele? Ele está aniquilando todas as agências de pesquisa, retirando investimentos. Recentemente um estudo feito por empresas que trabalham na área de energia renovável dos Estados Unidos (apontou) que são dezenas de bilhões de dólares que foram retirados.

Não vão fazer investimento na área de renováveis. Porque o governo colocou uma série de regras para dificultar a energia solar e eólica no país. Eles estão perdendo milhares de empregos. Mas o governo americano, este governo americano, governo Trump, não está ligando para isso.

Os Estados Unidos são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa no momento. O maior emissor histórico.

Há risco de o financiamento novamente ser um elefante na sala nessa COP?

O grande problema é que os países ricos prometeram e não cumpriram. A promessa foi sacramentada em 2019, para cumprirem a partir de 2020. A ciência diz que nós temos que manter o planeta aquecido em até no máximo dois graus. Mas de preferência um grau e meio. As promessas todas nos levam a um cenário de quase três graus. Nós não temos nem promessa suficiente. Há ideias boas de desmatamento zero. Mas como faz isso no Brasil, nesse momento, um país que já sabe que na projeção de 2027 não vai conseguir fazer o mínimo básico do orçamento. Vai tirar de onde esse dinheiro para cumprir metas climáticas. É por isso que existe esse mecanismo de financiamento internacional.

É a mesma coisa que a gente pensar o seguinte. Tem um grupo de amigos numa mesa de restaurante, os que chegaram primeiro pediram caviar, lagosta, champanhe. E tem quem está chegando agora, pediu uma água com gás e comeu um pastel. A conta não pode ser igual para todo mundo. Na agenda de clima. Esses países que enriqueceram poluindo o clima no mundo têm de pagar mais. Isso não tira a responsabilidade dos países em desenvolvimento.

Portanto o dinheiro tem que aparecer na mesa. Para que a gente possa fazer. Conjuntamente. Obviamente que esse tema não vai ser sanado enquanto o financiamento não for concretizado.

Qual é o papel da iniciativa privada nessa história?

As empresas são fundamentais. Principalmente na implementação. Quem é que perfura petróleo? Não é o governo. É uma empresa. Quem é que pode gerar uma economia para você frear desmatamento? É a atividade econômica, é o CNPJ que está ali para o bem ou para o mal. A COP é para ver como os países vão lidar com os alertas dos cientistas. A conferência do clima é a reunião estatal. Esses países têm que fazer um acordo e a regulamentação para realizar. E aí é que entra o setor privado. Porque essa regulamentação pode se dar através de punição. Você aumenta uma taxa. Através de incentivo. Você dá um incentivo fiscal e econômico. Para que determinada cadeia produtiva, que é mais benéfica para o clima, tenha mais condição de se estabelecer.

O governo Lula diz querer retomar liderança na agenda climática, mas tem problemas e contradições. Como é que o País fica nesse cenário?

Pode distrair e enfraquecer. Nós deveríamos estar todos unidos, sociedade civil e empresas, para fazer essa COP a melhor possível, fortalecer a presidência do Brasil. Quando você coloca uma discussão de licenciamento na pauta, um asfaltamento de uma estrada que vai destruir áreas intocadas de floresta e aumentar o desmatamento, de uma exploração de petróleo (na foz do Amazonas). No Congresso Nacional tem uma fila de 40 projetos de lei. Se eles aprovarem tudo, não sobra uma árvore de pé nesse país. Isso distrai a gente. A gente fica brigando para dentro, em vez de construir uma união para cobrar para fora.

Na negociação entre os países dificilmente algum cobra o outro sobre um problema doméstico. Mas se você tem um ambiente favorável, obviamente está mais emponderado para pôr cartas na mesa, e o contrário também é verdadeiro. O mundo pode dizer: Nós não topamos isso. Mas a gente tem que fazer a nossa parte. Como é que você cobra o que você não faz?

Fazer a COP em Belém foi uma boa escolha? Há problemas de saneamento, poluição, falta de hospedagem entre outros problemas.

Eu acho que a COP já gera um efeito bom porque a gente está discutindo isso. Porque a COP vai acontecer durante duas semanas e não vai acontecer nos locais em que a população sofre. Você vai preparar locais para conferência. Muitas vezes os delegados, as pessoas nem veem o que está acontecendo lá. Mas hoje, graças à COP lá, a gente sabe as condições com que as pessoas em Belém vivem. A urgência que é você sanar problema de saneamento em Belém, por exemplo. E que não é um problema da COP, não.

Quem está na COP vai ter saneamento. É um problema da cidade, dos moradores. Então, tomara que a COP pelo menos traga essa luz para a população lá.

Sobre a escolha da COP para Belém, tem algo que é muito marcante, que é o simbolismo político de você fazer na Amazônia. Então, eu acho que a visão foi acertadíssima.

E tem outras coisas excelentes em Belém. A mobilização da população, que faz muita diferença em uma conferência de clima. A gente vai ter, entre a primeira e a segunda semana de COP, uma grande marcha pelo clima. Isso é uma coisa que ganha os jornais do mundo inteiro. Serve para pressionar negociadores.

Agora, uma COP demanda um tipo de infraestrutura. E Belém tem a infraestrutura que ela tem. Então, você tem que ter uma ação governamental. Se você não age para a infraestrutura ficar a contento, você pode fazer a COP em Belém, em Piracicaba, ou onde você quiser, que vai dar problema.

Eu não sei como é que vai ficar o aeroporto, as comunicações, etc. Mas há uma crise hoje sobre acomodação. É um problema de que o governo não tomou as rédeas da circunstância antes.

O governo não gerenciou a oferta para colocar uma ordem em termos de preço, de acesso a esses locais. A ONU fez reunião para discutir os preços de acomodação em Belém. Tem países dizendo que correm o risco de não levar delegados porque não consegue pagar esse valor.

Se o país reduz o número de delegados, não consegue acompanhar todos os temas e pode dizer que não reconhece o que foi acertado, porque não estava lá. Isso é algo concreto, que inclusive o Brasil ouviu em uma reunião que teve na Alemanha agora, que é uma reunião intermediária que a gente tem, um bom, ouviu isso dos países. Então existe uma gravidade muito grande.

Infraestrutura boa não garante uma COP boa. O esforço que a cidade está fazendo, o esforço que a população está fazendo é digno de nota, para receber bem a conferência. Agora, existe no mínimo um vacilo do governo federal, principalmente, em gerenciar coisas críticas, como é o caso de acomodação.

Não tem nenhum problema de você ter hospedagem em navio, se virar com o que é possível. O grande problema dessa questão é que isso deveria ter sido feito há um ano.

Já fui em mais de dez COPs. A gente aluga dez, onze meses antes. Isso é fundamental para os países definirem a quantidade de delegados que vão lá fazer as negociações.

Me parece, eu não sei, mas vamos ver quando chegar lá, que o centro de conferências está bem adiantado, está contento, enfim, que os outros itens de infraestrutura estão caminhando. Mas esse que salta aos olhos é realmente a acomodação.

E quais são os outros pontos de vacilo no País em relação à COP?

Tem problema de participação. Nós temos uma vontade de participação de movimentos sociais, de dentro e fora do Brasil, que é gigantesca. Talvez uma das maiores que já existiu em conferência de clima. Tudo que a gente precisa para a agenda de clima é que ela largue as suas fronteiras, para que você tenha o problema de clima discutido com mais amplitude.

O governo federal está falhando miseravelmente em ajudar esses movimentos a irem para lá. E, olha, em alguns casos, está dificultando ainda os movimentos sociais para a conferência de clima. Eles não vão entrar nas áreas de negociação. Não vão disputar a rara infraestrutura de acomodação com ninguém. O movimento social vai na estrutura do Sírio de Nazaré, na estrutura de movimento social.

Eu não sei se a negociação vai ser boa, vai ser memorável, mas nós podemos fazer uma conferência cuja participação popular seja memorável. Então, o governo deveria estar olhando para isso como um imenso ativo dessa conferência de clima e não faz isso.

Qual é o legado que o Brasil tem obrigação de deixar nesta COP que marca os 10 anos do Acordo de Paris?

Vou listar três coisas que acho muito importantes. A primeira é manter o multilateralismo vivo. Ele corre risco. Mesmo que seja pra brigar, pra se desentender, mas você tem que se desentender num local organizado.

A segunda coisa é a gente demonstrar que isso pode ser feito apesar do que o governo Trump está fazendo. Veja, não são os Estados Unidos. Os Estados Unidos são importantíssimos pra agenda do clima, continuarão sendo importantíssimos sempre. Nós vamos ter, inclusive nos Estados Unidos, muita mobilização local dentro do país de continuidade da gente clima.

Então, é mostrar pra este governo Trump que meio que simboliza mais do que o negacionismo. Simboliza uma atitude de que o mundo está sofrendo, a tragédia está acontecendo e eu não estou nem aí. Vocês que se virem. Eu vou fazer o meu. Então é mostrar que isso não tem espaço no mundo.

E a terceira coisa é específica nos combustíveis fósseis. O Brasil não tem como garantir que os outros países vão topar, dar um passo além. Mas o Brasil precisa demonstrar que ele tentou. Agora é nossa hora, não vamos ter outra presidência de COP. Pelo menos não em pouco tempo.

Nós temos que ir no limite pra colocar essa agenda, que é a agenda mais importante se a gente quiser nos salvar nesse planeta.

Se o Brasil fala em ambição, é aqui que tem que ter ambição. Então vamos colocar em cima da mesa. Se o mundo não topar, a gente fez a nossa parte de propor e expôs aqueles que não topariam. Até isso seria já um avanço.

[Por: Estadão Conteúdo]

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