[Editada por: Marcelo Negreiros]
Infelizmente, os casos de estupro contra crianças e adolescentes só aumentam.
Em quase todas as distribuições de processos semanais são muitos casos, a grande maioria no seio da própria família.
Casos e mais casos de crianças ainda nos primeiros anos de vida sendo violentadas pelo pai, padrasto, tios, avós, namorado de alguém da família, vizinho, dono da mercearia, dentre muitas outras pessoas.
Casos horrorosos de se ver e as consequências psicológicas para as vítimas são devastadoras.
São milhares de vítimas, meninas e meninos, abusados sexualmente todos os anos só aqui em São Paulo.
Atualmente, na imensa maioria dos casos, a condenação é por estupro de vulnerável, mas nem sempre foi assim.
Até bem pouco tempo, inexistindo violência física ou grave ameaça e nem penetração, mas apenas atos lascivos, tipo beijos voluptuosos ou apalpadelas, havia magistrados que condenavam os abusadores sexuais pelo crime de importunação sexual (art. 215-A, do CP), com pena muito menor, mesmo sendo a vítima menor de 14 anos de idade, que não pode validamente consentir em matéria sexual por ainda estar em fase de desenvolvimento físico e mental.
Diferentemente dos animais irracionais, o ser humano não pode ser obrigado a manter relações sexuais com quem não queira.
O dano social e psicológico que o crime sexual provoca é extremamente significativo, tanto que dois desses delitos são classificados como hediondos (arts. 213 e 217-A do CP).
O juiz, ao julgar, deve analisar não só sob o ponto de vista técnico, mas com uma visão moderna. Deve, portanto, punir rigorosamente aquele que cometer um crime grave. Por outro lado, deve, igualmente, estar atento às mudanças dos costumes e interpretar a lei de acordo com as modificações sociais.
Desde 2005 tivemos diversas alterações legislativas no que tange a crimes sexuais, cujo título que deles trata no Código Penal passou a se chamar “Dos crimes contra a dignidade sexual”.
O legislador, atento à evolução ética e social brasileira, passou a ter sua visão voltada para a tutela dos direitos fundamentais, amplamente protegidos pela Constituição Federal.
Houve sensível alteração no foco de proteção da lei penal, que passou a garantir precipuamente a dignidade sexual, muito embora a moral sexual e os bons costumes continuem a ser alvo da tutela penal.
A dignidade sexual é espécie do gênero dignidade da pessoa humana, tida por muitos doutrinadores como o princípio mais importante de nossa Carta Constitucional.
A dignidade da pessoa humana se irradia sobre todo o ordenamento jurídico e serve de base para a criação de leis e interpretação das normas.
Com efeito, todo ser humano deve ser tratado como pessoa digna, garantindo-lhe o Estado todos os direitos inerentes para sua existência de forma confortável, como o direito à saúde, educação, trabalho, segurança, dentre outros, previstos na Constituição Federal.
A dignidade sexual é a possibilidade de autodeterminação em matéria sexual, de modo a ser protegida toda pessoa de danos psicológicos, físicos e morais relacionados a práticas sexuais.
Os crimes sexuais contidos no Código Penal atingem de maneira ampla e genérica a dignidade sexual da vítima. Cada crime possui sua própria objetividade jurídica, que é derivada da dignidade sexual, que sempre será violada quando da prática de delito sexual.
A Lei 13.718, de 24 de setembro de 2018, instituiu novo tipo penal, previsto no artigo 215-A, do Código Penal, com nomen iuris de importunação sexual. Diz o tipo: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave”.
A criação dessa norma penal se deveu aos constantes ataques sexuais ocorridos nos transportes coletivos, onde homens se masturbavam e ejaculavam após encostar ou esfregar seu órgão sexual em mulheres, conduta que, até então, poderia configurar mera contravenção penal prevista no artigo 61 do Decreto-lei nº 3.688/1941, punida com pena de multa.
A primeira observação que faço é que o tipo penal de importunação sexual é eminentemente subsidiário, isto é, somente será aplicado se o fato não constituir crime mais grave, como o estupro e o estupro de vulnerável.
Para nele incorrer, o agente deve praticar contra alguém e sem a sua concordância ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
O ato libidinoso deve ser praticado contra a vítima, que é pessoa determinada, e sem a sua aquiescência. Assim, havendo a concordância da vítima, o fato é atípico.
A lei não limita a espécie de ato libidinoso que pode ser praticado pelo agente. Porém, por impropriedade lógica, algumas espécies de atos libidinosos não são passíveis de ser praticados sem a concordância da vítima, como a conjunção carnal, sexo anal ou oral. Nesses casos, ou haverá constrangimento para a realização do ato libidinoso por meio de violência ou grave ameaça, configurando-se o estupro, ou o fato será atípico pela concordância da vítima. Entretanto, no caso de a concordância para a prática do ato libidinoso ser obtida mediante fraude, o crime será o de violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP).
Por outro lado, sendo a vítima menor de 14 anos ou portadora de enfermidade ou de deficiência mental, que não lhe propicie o necessário discernimento em matéria sexual, mesmo que consinta com o ato, responderá o agente pelo delito previsto no artigo 217-A do Código Penal (estupro de vulnerável). Isso porque, de acordo com a referida norma legal, pessoas nessas condições não podem validamente consentir em matéria sexual. O mesmo ocorrerá quando a vítima não puder, por qualquer outro meio, oferecer resistência, como quando está embriagada ou sob o efeito de hipnose.
O artigo 217-A do Código Penal não traz a presunção de violência, como ocorria com o revogado art. 224 do Código Penal, em que era presumida a violência quando fossem praticados atos sexuais com menores de 14 anos, alienados ou débeis mentais, ou quando a vítima não pudesse, por outra causa, oferecer resistência.
A nova norma é objetiva e expressamente determina a punição daquele que praticar qualquer espécie de ato sexual com pessoa menor de 14 anos, pouco importando se ela já tem vida sexual ativa ou está prostituída.
O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a questão em recurso especial representativo da controvérsia, fixou a seguinte tese: “Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime (1)”.
A respeito do tema foi editada pelo Superior Tribunal de Justiça a Súmula 593: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.
Cuidando-se de menor de 14 anos não se aplica o art. 215-A, do Código Penal, que é eminentemente subsidiário. O comando legal previsto no art. 217-A do Código Penal é objetivo, ou seja, basta que o ato libidinoso de qualquer espécie seja praticado com menor de 14 anos de idade. Referida norma traz como elementos objetivos do tipo a conjunção carnal e qualquer outro ato libidinoso, que é aquele que visa à satisfação do prazer sexual do agente. Menor de 14 anos, de acordo com a lei, não pode validamente consentir em matéria sexual. Por isso, a severa punição.
A grande finalidade da norma prevista no artigo 217-A do Código Penal é a proteção do normal desenvolvimento moral e sexual das pessoas menores de 14 anos, que ainda não possuem discernimento suficiente para consentir em matéria sexual.
Dizer que passar as mãos nos seios, na vagina, praticar sexo oral, esfregar o pênis nas vítimas menores de 14 anos não constitui conduta grave, mas mera importunação sexual, que permite a aplicação de penas restritivas de direitos, é estar em total descompasso com a realidade brasileira.
Decisões desse tipo incentivam a prática de estupros de vulnerável, que infelizmente têm ocorrido a rodo, notadamente no seio familiar e com vítimas muito jovens, algumas com seis, sete ou oito anos de idade.
Acerca da hipótese, o Superior Tribunal de Justiça em muito boa hora, fixou a seguinte tese:
“Presente o dolo específico de satisfazer a lascívia própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)” (Tema 1121).
Enfim, o tema é importante e merece profunda reflexão, notadamente em razão da modernidade, que propicia o contato de abusadores sexuais com nossas crianças e adolescentes por diversos meios eletrônicos, sem contar, ainda, que o maior perigo, na maioria das vezes, encontra-se dentro de casa, anotando que a mãe ou o pai que souber do delito e nada fizer, será responsabilizado juntamente com o autor pelo mesmo delito cometido por omissão (art. 13, § 2º, “a”, do CP), já que tem a obrigação legal de proteger seus filhos e impedir sejam vítimas de violência sexual para que possam crescer livres das consequências desse gravíssimo delito, que destrói psicologicamente suas vítimas.
1) STJ: REsp 1.480.881-PI, 3ª Seção, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, v.u., j. 26.08.2015.
[Por: Estadão Conteúdo]
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