Especialistas citam a dificuldade de avaliar contextos enquanto o vídeo ainda está em produção e a longa duração das transmissões como fatores complicadores
Quando usou, na tarde de 17 de agosto, a reunião com embaixadores para, sem provas, fazer ataques às urnas eletrônicas, o presidente Jair Bolsonaro (PL) fez questão de manter um hábito que adota desde o início do governo: transmitir em tempo real as declarações aos seus seguidores nas redes sociais. Em 24 horas, a live já tinha acumulado mais de 1,2 milhão de visualizações nas contas oficiais do presidente nas principais plataformas. Passaram-se, então, 37 dias com os vídeos no ar no Facebook e Instagram até a Justiça Eleitoral determinar que as plataformas retirassem o conteúdo. Somando todas as transmissões ao vivo no YouTube e Facebook, Bolsonaro alcançou ao menos 68,3 milhões de visualizações nos últimos meses, volume três vezes maior que o de Lula: 19,7 milhões.
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O caso da live da cerimônia com embaixadores retrata o desafio que é o combate à desinformação, especialmente sobre as urnas e o processo eleitoral, em um formato que alcança simultaneamente milhares de usuários. Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam algumas especificidades, como a dificuldade de avaliar contextos enquanto o vídeo ainda está em produção e a longa duração das transmissões, que não costumam ser alvo de medidas como selos com alerta de fake news e até mesmo remoções com agilidade. Em entrevista ao GLOBO no mês passado, a ex-funcionária do Facebook Frances Haugen também contou que, no caso do Facebook, a plataforma costuma destacar esse tipo de conteúdo, que recebe mais peso na timeline dos usuários.
Os números de transmissões ao vivo e audiência de Bolsonaro e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ajudam a dimensionar o impacto que esse formato alcança. Um levantamento feito a pedido do GLOBO pela pesquisadora Tatiana Dourado, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD), revela que Bolsonaro atingiu 9,3 milhões de visualizações em suas lives semanais no YouTube desde janeiro, número bem superior aos 3,7 milhões alcançados em transmissões ao vivo por Lula no mesmo período, embora o petista tenha feito mais lives mapeadas pelo levantamento.
No Facebook, dados levantados pelo GLOBO com a plataforma CrowdTangle, disponibilizada pela Meta, apontam para uma audiência ainda maior nos últimos três meses. Enquanto o atual presidente fez 241 transmissões ao vivo desde julho, com mais de 59 milhões de visualizações somadas, Lula fez 54 lives, assistidas 16 milhões de vezes. A título de comparação, em 2018, no mês de outubro, quando foram realizados o primeiro e segundo turno do pleito, Bolsonaro fez apenas 19 lives, um quarto da média atual. As transmissões ao vivo também ocorrem fora das contas oficiais dos políticos. Foi o caso da entrevista concedida por Bolsonaro ao podcast Flow, que chegou a reter 535 mil espectadores simultâneos.

Visualizações de lives do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no YouTube — Foto: Arte O Globo

Visualizações de lives do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Facebook — Foto: Arte O Globo
Tatiana Dourado ressalta que um complicador é que essas transmissões são, em geral, longas e têm como base o discurso falado, que é menos objetivo que uma postagem comum de texto ou imagem. Hoje, boa parte da moderação de conteúdo feita pelas redes é automatizada, ainda que haja combinação com verificação humana.
— Lives costumam ser mais complexas de serem moderadas, mas tem o agravante de o efeito ser imediato, já que são dezenas de milhares de pessoas assistindo ao mesmo tempo e a live não costuma ser derrubada naquele exato momento, mesmo nos casos em que há discurso de alegação de fraude nas urnas e ameaça à democracia. Além disso, elas são compartilhadas e circulam em outras plataformas, como o WhatsApp e Telegram — analisa a pesquisadora. — Um líder político como o presidente Bolsonaro costuma ter grande audiência. Do ponto de vista de comunicação, esse tipo de canal de comunicação direta é bastante eficiente tanto para manter a base de eleitores engajada quanto potencialmente para agregar apoiadores susceptíveis àquele discurso e agenda.
Bloqueios temporários
Francisco Cruz, do InternetLab, avalia que a “ansiedade política” no contexto eleitoral brasileiro eleva a demanda por esse tipo de conteúdo, que apela para a novidade e para a possibilidade de interação, capturando a atenção dos usuários das plataformas. O pesquisador chama atenção para as especificidades da moderação de conteúdo nesses casos.
— É diferente de analisar conteúdo que tem começo, meio e fim. Não há o conteúdo inteiro para analisar, mas uma peça em produção. Para analisar se o conteúdo viola ou não as regras, é importante ter o máximo de elementos contextuais para entender se a política se aplica ou não. Na live, você não sabe se o cara vai sacar uma arma. O que pode vir depois pode ser bom ou ruim. Isso exige capacidade de analisar e tomar decisões muito rápido — explica Cruz, que lembra o exemplo do serviço de streaming de vídeo ao vivo Twitch, usado especialmente no universo dos games, que tem conseguido agir com velocidade para derrubar transmissões em casos de violações graves.
Uma estratégia já usada pelas grandes plataformas são os bloqueios temporários para a realização de lives. Os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF) já foram alvos da medida no Instagram este ano.
As lives ganharam tanta centralidade que viraram alvo disputa política entre os candidatos a presidente mais bem colocados nas pesquisas e têm sido difundidas como sinônimo de adesão popular. Há duas semanas, o atual presidente e Lula rivalizaram com lives simultâneas. O petista participou de uma transmissão com o deputado federal André Janones (Avante), em que a continuidade do auxílio de R$ 600 no ano que vem foi colocada em dúvida, ao mesmo tempo que Bolsonaro concedia uma entrevista ao canal Cara a Tapa.
Por Marlen Couto — Rio de Janeiro
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