[Editada por: Marcelo Negreiros]
Na noite seca e amena de Brasília do último sábado, o compositor João Bosco entoou a canção “O bêbado e o equilibrista” para o público, de classe média alta, de um festival de jazz na capital federal, realizado na Asa Rua, um dos bairros de maior renda per capita de todo o país. Formou-se um coro emocionado com os versos que embalaram a anistia e a volta do exilados políticos brasileiros, em 1979, no estertores da ditadura brasileira.
“Meu Brasil que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil”
Mas não vivemos mais tempos de esperança, de entendimentos, mas de rivalidades e antiutopias. Ao final da canção, numa reversão do sentido da obra, começa um novo coro no festival: “Sem anistia! Sem anistia! Sem anistia!”, que empolga a multidão de maneira crescente. O autor da obra engrossa as vozes. Com o aval do compositor, portanto, o hino da anistia tem seu significado revertido. De hino da anistia, torna-se da não anistia. O letrista, Aldir Blanc, morto pela Covid em 2020, não pode mais acompanhar o caso.
De um lado, defende-se anistia geral e irrestrita para os vândalos do dia 8/1. E, se possível, que se salve também o ex-presidente Jair Bolsonaro, agora em prisão domiciliar e prestes a ser definitivamente condenado por tentativa de golpe de Estado. Do outro lado, como se ouviu nos brados em Brasília, não se quer anistia nenhuma. Foto: Wilton Junior/Estadão
“A diferença era que, em 1979, a causa era certa”, explica uma apoiadora do movimento do Plano Piloto. Mas o que temos no Brasil é uma espécie de divisão inconciliável que não é só política. É também cultural, comportamental, de perspectivas de mundo. De um lado, defende-se anistia geral e irrestrita para os vândalos do dia 8/1. E, se possível, que se salve também o ex-presidente Jair Bolsonaro, agora em prisão domiciliar e prestes a ser definitivamente condenado por tentativa de golpe de Estado. Do outro lado, como se ouviu nos brados em Brasília, não se quer anistia nenhuma. Nem para pessoas humildes que tiveram a ignomínia de militar do lado errado – da turma dos golpistas.
Por muito tempo, uma das maiores críticas que se fazia ao modo de ser do Brasil era nossa tendência excessivamente conciliatória, que tendia sempre a um acordo entre as elites. Era algo que precisava ser destruído em nome de um país mais justo. Era mais comum à esquerda, nas universidades, nas plenárias. Logo depois, a direita encampou o mesmo discurso, porém com outro alvo, entre eles nossos políticos tradicionais, as minorias, nossa academia, a classe artística mainstream (de gente como João Bosco) e a imprensa.
Slogans, na maioria das vezes, são inimigos do pensamento. Mas sao ferramentas poderosas da política. Ainda funcionam nos tempos de erosões insufladas pelos pensamentos rasos e contundentes das redes sociais. Pessoas se conectam com suas tribos virtuais e agem de maneira coordenada. Há inimigos claros, há heróis identificáveis, há até os artistas certos para quem acha que está com razão em sua luta política. O espaço para nuances e dissonâncias existe, mas é menos popular. É francamente minoritário. No caso específico, qual a força política, hoje, de quem acha que anistia irrestrita é algo inaceitável, que considera que Bolsonaro deve ser punido conforme a lei, assim como também critica penas excessivas para tanta gente que foi apenas bucha de canhão? Lunáticos, alienados com penas próximas a duas décadas precisam ser punidos por tanto tempo? A música que embalou o fim da censura hoje é cantada por gente que defende a censura “pela causa certa?”.
Não temos mais nenhum grupo político com força suficiente para pelo menos tentar unir o país. E nesse roldão continuará a disputa em que o vencedor precisa garantir todos os votos da sua turma e a maioria dos que irão escolher por rejeição. Não há música, não há hinos que juntem a todos. Até mesmo as antigas obras-primas, como o bêbado e o equilibrista, hoje são apenas um troféu contraditório, paradoxal, e algo incoerente de apenas uma das torcidas.
Na Asa Sul, onde ocorreram as manifestações contra a anistia, Bolsonaro teve 45,8% dos votos no segundo turno de 2022 e Lula, 40,15%.
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[Por: Estadão Conteúdo]
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