O luto pela entidade pai e a constituição da identidade

[Editada por: Marcelo Negreiros]

A figura paterna ocupa um lugar simbólico de extrema relevância na estruturação psíquica do sujeito. Trata-se, antes de qualquer presença concreta, da inscrição de uma função que organiza o campo das referências, dos limites e da alteridade. Tal função, quando ausente ou falha, deixa lacunas que atravessam as etapas do desenvolvimento e reverberam nas escolhas afetivas e existenciais ao longo da vida.

Não se trata, unicamente, da ausência física. Em muitos casos, há uma presença corporal que não se traduz em disponibilidade emocional ou escuta. A carência de um olhar validante, de uma presença implicada ou de um gesto de reconhecimento marca a experiência subjetiva com silêncios estruturantes. A ausência simbólica, nesses casos, não é menos impactante que o abandono material.

Na clínica, observa-se a recorrência de pacientes que carregam a marca da não mediação paterna. São histórias atravessadas por uma dificuldade em nomear afetos, sustentar vínculos ou manejar frustrações sem recorrer a defesas rígidas como o distanciamento, o controle racionalizado ou a hostilidade. Tais defesas não constituem escolhas deliberadas, mas expressões do desamparo inicial.

Em resposta a essa ausência, frequentemente se constrói, no imaginário, uma entidade idealizada: a “entidade pai”. Essa entidade não corresponde ao pai empírico, mas a uma projeção carregada de atributos perfeitos, infalíveis e protetores. Trata-se de um espaço simbólico onde residem potências irreais, esperanças de completude e fantasias de invulnerabilidade. A entidade opera como suporte psíquico em momentos de instabilidade, mas impede, com o tempo, o encontro com a figura real e suas limitações.

O processo de amadurecimento, muitas vezes na idade adulta, implica o desmonte dessa construção. Reconhecer que o pai não é a entidade, mas um sujeito com falhas, medos, ausências e escolhas próprias, demanda um luto específico. É o luto pela idealização. Trata-se de retirar o título simbólico daquele que ocupava um lugar de onipotência e compreender que a realidade não se curva às expectativas.

Essa transição não é isenta de dor. O sujeito precisa renunciar ao amparo imaginário para acessar uma compreensão mais honesta da sua própria história. O sofrimento que emerge dessa travessia pode, por vezes, desorganizar temporariamente os sentidos que sustentavam as narrativas afetivas. Entretanto, apenas a partir dessa queda simbólica torna-se possível uma reorganização psíquica mais condizente com a realidade interna.

A idealização, quando sustentada por tempo excessivo, produz um modelo inalcançável de si e dos outros. Em muitos casos, o sujeito busca repetir, nas relações amorosas ou profissionais, a dinâmica de tentar preencher o que nunca foi dado. Há uma compulsão à repetição que apenas se dissolve com a nomeação do vazio original. A escuta clínica oferece, então, a possibilidade de simbolizar o que não foi vivido, sem precisar encenar indefinidamente a mesma ausência.

Não se trata de responsabilizar figuras ou personalidades, mas de reconhecer os efeitos de inscrições precoces sobre a estrutura do desejo. Compreender a distância entre a entidade e o pai real é também compreender a distância entre a fantasia e o vivido. A tarefa terapêutica é possibilitar esse percurso, dando lugar à verdade subjetiva, mesmo quando ela se constrói sobre a frustração.

Transformar o sofrimento não exige apagar a falta, mas reconhecer sua existência. A elaboração daquilo que não foi pode cessar os ciclos de repetição e abrir espaço para modos de existência mais implicados, menos orientados pela defesa e mais comprometidos com o exercício da escuta interna.

[Por: Estadão Conteúdo]

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