O mito confortável das múltiplas inteligências

Em 1983, um psicólogo de Harvard lançou uma ideia que prometia mudar tudo o que sabíamos sobre a mente. Frames of Mind, de Howard Gardner, apresentava um mapa novo da inteligência humana.

Não havia uma só inteligência, dizia ele, mas muitas: musical, espacial, interpessoal, corporal, intrapessoal. Cada pessoa seria dotada de um tipo próprio de brilho — uma centelha singular que os testes de QI jamais conseguiriam capturar.

A mensagem era bela. Professores e pais a receberam como uma libertação: finalmente, uma teoria que reconhecia todas as crianças como talentosas, cada uma a seu modo. Em poucos anos, a ideia atravessou continentes. Escolas, governos e editoras abraçaram-na com entusiasmo quase missionário. Gardner tornou-se referência mundial, não apenas em psicologia, mas em educação e políticas públicas.

Mas há algo de curioso nessa história: quatro décadas depois, a teoria das múltiplas inteligências (MI) continua viva — sem uma única evidência empírica que a sustente.

Como explicar o sucesso de uma ideia que a ciência nunca confirmou?

A MI e seus equívocos

Howard Gardner não é um charlatão. Sua proposta nasceu de uma inquietação legítima: a psicologia, dizia ele, descrevia mentes em gráficos, mas esquecia as pessoas reais.

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No início dos anos 1980, os testes de QI eram vistos — mais na cultura popular do que na prática científica — como símbolos de uma meritocracia fria e impessoal. Gardner retratou essa psicologia psicométrica como uma ortodoxia reducionista, embora essa imagem fosse, em parte, uma distorção conveniente.

Na realidade, o campo já estava longe de ser o monólito que ele descreveu. Décadas antes, psicometristas como Raymond Cattell, John Horn e John Carroll haviam proposto modelos hierárquicos e multifatoriais, nos quais o fator geral (g) coexistia com habilidades específicas — como raciocínio fluido e conhecimento cristalizado. Mesmo críticos do fator geral, como Robert Sternberg, trabalhavam dentro de padrões empíricos, não contra eles.

Relatórios da American Psychological Association já alertavam sobre viés cultural e limites éticos, e ninguém na psicologia séria afirmava que o QI media “o valor” de uma pessoa. Gardner, porém, ignorou deliberadamente essa literatura, preferindo combater uma caricatura. Gardner chega a chamar de “vilões” os pesquisadores que adotam o modelo de inteligência geral.

A teoria das múltiplas inteligências oferecia algo que o público ansiava: uma visão generosa da diferença humana. Ela dizia, essencialmente, que ninguém é “burro”, apenas inteligente de outro jeito. Na superfície, parecia uma correção humanista a um sistema frio e competitivo. E, pedagogicamente, teve efeitos reais: inspirou educadores a enxergar talento fora das notas, a valorizar a arte, o corpo, a empatia.

A MI ganhou força não por refutar a ciência, mas por interpretá-la como uma ofensa. E, a partir daí, uma boa metáfora educacional começou a ser tratada como descoberta científica.

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A falha de uma ideia confortável

A questão, então, era simples: se as inteligências de Gardner realmente existiam, elas deveriam ser mensuráveis. E se podiam ser medidas, também podiam ser comparadas. Foi aí que o encanto começou a desaparecer.

A teoria das múltiplas inteligências propõe facetas independentes (musical, espacial, interpessoal, etc.). Quando essa independência é testada, o padrão observado é o contrário: as pontuações nessas áreas se correlacionam.

Em análises fatoriais de grande escala, essas correlações formam uma estrutura hierárquica com um fator geral no topo — o g — e, abaixo dele, habilidades amplas como Gf (fluida) e Gc (cristalizada). Esse resultado é replicado de forma robusta em diferentes baterias e populações.

Do ponto de vista preditivo, as medidas alinhadas a g explicam desempenho escolar e ocupacional melhor do que qualquer bateria “MI”. MI não oferece ganho incremental de predição quando g e domínios amplos já estão no modelo.

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No cérebro, a promessa de “módulos” dedicados a cada inteligência também não se confirmou. Evidências contemporâneas apontam para redes de demanda múltipla e mecanismos de reutilização neural, nos quais as mesmas regiões dão suporte a tarefas variadas — linguagem, raciocínio, controle executivo, percepção espacial. A arquitetura é parcialmente compartilhada, não segmentada por “inteligências” como previsto por Gardner.

Em resumo, onde a MI exige independência mensurável, ganho preditivo e módulos neuronais dedicados, os dados mostram interdependência psicométrica, primazia preditiva de g e redes neurais compartilhadas.

O teatro moral

Se a teoria das MI não sobrevive aos dados, por que ainda domina o discurso educacional? A resposta é menos científica do que psicológica. Ela prospera porque faz as pessoas se sentirem bem.

Nas faculdades de educação, a teoria das MI se tornou quase um código de ética — uma maneira de sinalizar compaixão e rejeitar o que se entende, erroneamente, como elitismo cognitivo. Professores, gestores e formadores a adotam como bandeira moral: a ideia de que todos têm talentos únicos soa democrática, inclusiva, quase terapêutica. E o ambiente escolar, cansado de desigualdades e fracassos, acolheu com alívio essa promessa de redenção pedagógica.

Mas há um preço.

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Estudos mostram que crenças em neuromitos — como estilos de aprendizagem, hemisférios cerebrais dominantes ou inteligências múltiplas — são quase universais entre professores.

Uma pesquisa de 2017 revelou que mais de 80% dos docentes em países desenvolvidos acreditam em pelo menos um desses conceitos e os utilizam em sala de aula.

Quatro anos depois, autores de uma revisão de literatura mostraram que 929 professores de 15 países, encontraram o mesmo padrão: mais de 90% dos entrevistados aceitavam ao menos um neuromito, e 68% continuavam acreditando na teoria das MI — mesmo entre educadores com formação em neurociência.

Entre os mitos mais citados estavam “as pessoas aprendem melhor segundo seu estilo de aprendizagem preferido”, “usamos apenas 10% do cérebro” e, claro, “as inteligências múltiplas são cientificamente comprovadas”.

Os autores resumem o fenômeno de modo implacável: essas ideias são “benignas na aparência, mas danosas na prática”. Os números sugerem que a pseudociência educacional não é um erro pontual — é uma cultura.

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E o problema não é só epistemológico. É distributivo.

Cada minuto e cada recurso investido em estratégias baseadas em múltiplas inteligências é um minuto e um recurso não aplicados em práticas realmente eficazes. A alfabetização, por exemplo, é uma das áreas mais afetadas: professores treinados em teorias não validadas tendem a adotar métodos intuitivos, deixando de lado abordagens com base empírica sólida — como a instrução fônica sistemática, reconhecida por meta-análises da National Reading Panel.

Para o aluno, o custo é invisível, mas devastador: a chance reduzida de aprender. Essa é a ironia cruel das boas intenções.

O mito das múltiplas inteligências floresceu porque parecia ético, mas o resultado é o oposto: perpetua desigualdades, ao substituir a eficácia pelo conforto.

Em nome da gentileza, rebaixou-se o rigor.

A ciência perdeu espaço não para a maldade, mas para o desejo de parecer virtuoso. E talvez não haja nada mais perigoso, no campo da educação, do que uma mentira que tranquiliza.

Felipe Novaes é psicólogo e professor da PUC-Rio. Divulga o melhor da psicologia científica no Garagem Psi. Atua no cruzamento entre ciência, filosofia e cultura, onde dados e mitos se estranham com frequência. Interessa-se por psicologia evolucionista, história das ideias e pela tensão entre razão e pertencimento em tempos de algoritmo.

[Por: Superinteressante]

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