Durante séculos, a gagueira foi cercada por estigmas e equívocos. Atribuía-se o distúrbio a traumas infantis, nervosismo, criação rígida ou até falhas de caráter. Mas um novo e abrangente estudo genético, publicado revista Nature Genetics, oferece evidências robustas de que a raiz do problema está nos genes, e não em fatores emocionais ou comportamentais.
A gagueira afeta cerca de 1% da população mundial, o que representa aproximadamente 80 milhões de pessoas. Caracterizada por repetições involuntárias de sons e pausas inesperadas durante a fala, costuma surgir na infância. Embora muitos casos desapareçam espontaneamente, uma parte significativa dos indivíduos continua a conviver com o distúrbio na vida adulta.
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A nova pesquisa analisou os dados genéticos de mais de 1 milhão de pessoas cadastradas na plataforma 23andMe, e é a maior investigação já realizada sobre a gagueira. Os cientistas compararam os genomas de quase 100 mil participantes que relataram já ter gaguejado com mais de 1 milhão que nunca apresentaram a condição.
O resultado foi a identificação de 57 regiões do DNA associadas ao risco de gaguejar, mapeando 48 genes distintos. Muitos desses genes também estão ligados a condições como autismo, TDAH, depressão e epilepsia.
Entre os destaques está o gene VRK2, já relacionado a doenças como esquizofrenia e esclerose múltipla, além de estudos sobre perda de linguagem em Alzheimer e até sobre ritmo motor (como a capacidade de bater palmas no compasso).
A descoberta reforça uma hipótese que vem ganhando força: a de que a gagueira pode ser resultado de falhas no processamento temporal do cérebro, especialmente na percepção de ritmo.
O estudo só foi possível graças ao tamanho inédito da amostra e ao uso de análises genômicas em larga escala. Nos anos 2000, pesquisas sobre gagueira eram limitadas a pequenas comunidades geneticamente homogêneas, como grupos no Paquistão ou na África. Embora úteis para identificar mutações específicas, esses estudos careciam de amplitude para gerar conclusões generalizáveis.
Com a base da 23andMe, os pesquisadores puderam refinar as análises por sexo e ancestralidade genética. Descobriram, por exemplo, que os fatores de risco genético se expressam de maneira diferente entre homens e mulheres.
Embora meninos e meninas sejam igualmente afetados na infância, a gagueira persiste na vida adulta de forma muito mais frequente entre homens – cerca de quatro vezes mais. Os dados sugerem que essa diferença pode estar ligada à maior taxa de recuperação espontânea entre mulheres. Para entender melhor esse fenômeno, os pesquisadores construíram dois modelos separados de pontuação de risco genético: um com base nos dados de participantes do sexo masculino, e outro com dados femininos.
Essas pontuações, chamadas de scores poligênicos, estimam a probabilidade de uma pessoa desenvolver a condição a partir da combinação de múltiplas variações no DNA. A pontuação baseada em homens conseguiu prever a gagueira de forma eficaz em ambos os sexos. Já a pontuação feminina teve desempenho inferior, indicando que ela foi menos precisa para identificar quem tem risco de gaguejar.
Esse resultado pode ter duas explicações principais: a predominância de mulheres não gaguejantes na amostra pode ter dificultado a construção de um modelo confiável, ou pode haver, de fato, diferenças biológicas reais entre os sexos no que diz respeito à origem genética da gagueira.
Mais de 20 dos genes identificados no estudo também estão relacionados a condições do neurodesenvolvimento, características metabólicas, cardíacas e circulatórias. Para Jennifer Below, diretora do Instituto de Genética da Universidade Vanderbilt e uma das autoras da pesquisa, isso reforça a natureza neurológica da gagueira. “Nosso estudo mostra que a gagueira é influenciada por nossos genes — não por falhas pessoais ou familiares, nem por inteligência”, afirmou em comunicado.
Apesar do avanço, os autores reconhecem limitações importantes. A amostra é composta majoritariamente por mulheres e pessoas de ascendência europeia, o que não reflete a distribuição real da condição no mundo. Isso dificulta conclusões sobre populações asiáticas e africanas, por exemplo.
Ainda assim, especialistas consideram os resultados um marco. Em entrevista à Science, Gregory Snyder, cientista da fala da Universidade do Mississippi, afirmou que os novos dados representam um “salto quântico” na compreensão da gagueira, com potencial para guiar o desenvolvimento de novos tratamentos no futuro.
Dillon Pruett, pós-doutorando e coautor do estudo, também vive com gagueira. Ele acredita que as descobertas têm impacto não apenas clínico, mas também social. “Há muitas perguntas sem resposta sobre a gagueira. Nosso estudo mostra que muitos genes contribuem para o risco. Esperamos que esse conhecimento ajude a combater o estigma e leve a novas abordagens terapêuticas”, disse.
Os pesquisadores esperam que os achados sirvam também para mudar a percepção pública. “Queremos espalhar a mensagem de que a gagueira é uma característica genética e que não é culpa de ninguém”, concluiu Below.
[Por: Superinteressante]
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