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O último amigo de infância de Humberto de Campos

José Almeida Pereira *

Um amigo de infância do escritor Humberto de Campos (1886-1934) ainda vive na cidade piauiense de Parnaíba. Ao longo dos seus 127 anos de existência, bem ou mal vividos, ele superou períodos de graves crises, quase sucumbiu aos maus tratos, mas conseguiu reencontrar forças, restabelecer-se e continuar esbanjando saúde e até produzir flores e frutos, literalmente. A relíquia histórica e cultural foi visitada por este pesquisador, devendo-se tal iniciativa a um presente recebido de duas coleções daquele consagrado escritor maranhense das mãos da Drª Danielle Machado de Azevedo, minha colega pesquisadora da Embrapa no Piauí.

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Ao longo das minhas mais de três décadas no Piauí, só uma vez ou outra, eu ouvi falar do “Cajueiro de Humberto de Campos” existente em Parnaíba. Talvez porque ninguém, ou quase ninguém, mais se reporta a ele, eu também até já o havia esquecido. Despertaram-me as leituras das Memórias (vol. 10) e das Memórias Inacabadas (vol. 11) das Obras Completas de Humberto de Campos, da Editora Mérito. Rememorei até que já tinha conhecido Miritiba, a atual cidade de Humberto de Campos, cujo nome foi mudado em 1934, para homenageá-lo, oito dias após o falecimento do seu filho mais ilustre, e que está localizada a pequena distância do litoral maranhense e fincada numa região que somente há duas décadas viu chegar o automóvel nos seus areais.

Desde os tempos daquele menino que nasceu e cresceu se lambuzando nas dunas de Miritiba, a vida ali, assim como ainda ocorre hoje em vários pontos das Reentrâncias Maranhenses, segue o ritmo das marés, constituindo, talvez, uma civilização única no País. Todas as comunicações com as vizinhas comunidades, inclusive a capital do Maranhão, se davam ou se dão ainda por via fluvial, mediante o uso de singelos barcos e canoas. Pude testemunhar pessoalmente o alvoroço da população local com o apito e a chegada de um barco às cinco horas da manhã o qual havia partido da baía de São José de Ribamar doze horas antes e subido preguiçosamente o rio Piriá até ancorar na rampa da cidade de Humberto de Campos.

As raízes do literato

Não se trata aqui de um texto biográfico, mas Humberto de Campos Veras nasceu em 25 de outubro de 1886 em uma pequena comunidade ribeirinha chamada Miritiba, plantada no meio da areia às margens do rio Piriá, no estado do Maranhão. Seus genitores eram maranhenses, sendo a sua mãe, dona Ana de Campos Veras, oriunda de família de Viana, município localizado na Baixada Maranhense, e o seu pai, Joaquim Gomes de Farias Veras, do município de Tutóia, no litoral leste do Estado. Com o falecimento precoce do seu pai, ocorrido durante uma viagem do casal a São Luís, em 1892, a sua genitora resolveu liquidar os negócios da família em Miritiba e irem tentar reconstruir a vida, já no ano seguinte, na cidade de Parnaíba, no Piauí, onde os Veras eram prósperos comerciantes e, aliás, continuam tendo expressão econômica e política até hoje.

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A viagem da família Campos Veras para Parnaíba teria uma escala em São Luís, onde se demoraria cerca de um mês, mas lapso de tempo suficiente para o menino Humberto captar as imagens das fábricas, bondes e milhares de sobradões coloniais da capital maranhense. Daí, segundo ele, a decepção que sentiu ao chegar em Parnaíba. “As ruas da cidade eram de areia solta, dos seis sobradões, três se achavam entregues aos morcegos e às corujas. A primeira impressão foi de que Parnaíba era uma Miritiba grande… Em Miritiba, meu pai era tudo e não nos faltava nada; em Parnaíba, éramos nada e nos faltava tudo”.

Em Parnaíba, no primeiro ano, a família ficou dividida, residindo em casas de parentes. Em 1894, foi reunida em uma pequena casa alugada na rua Pará, no bairro dos Campos. Dois anos depois, muda-se para uma casa própria vizinha, na mesma rua (hoje rua Humberto de Campos), construída com as economias (quatro ou cinco contos de reis) restantes da herança deixada pelo pai.

Na mesma época, Humberto de Campos iniciou as suas instruções primárias na Escola Pública de Sinhá Raposo, porém, conforme gostava de rememorar, foi na Escola de Dona Marocas Lima, a segunda que frequentou, que ele se sentiu aquinhoado pelo destino. É que mais tarde alguns dos seus colegas de turma se tornariam importantes personalidades da história do Piauí, como foram os casos de João de Deus Pires Leal (governador), Frederico Clark (diplomata) e Oscar Clark (cientista), estes filhos do comerciante inglês James Clark, detentor de uma das maiores fortunas do Norte e Nordeste do Brasil e figura lendária de Parnaíba. Sem contar que ele próprio, no dia 8 de maio de 1920, em função de sua vasta obra literária, meter-se-ia no seu impoluto fardão como membro titular da cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras.

O Amigo de Infância

No ano de 1896, o menino Humberto de Campos conhece em sua nova casa de Parnaíba um grande e inesquecível amigo. É ele quem conta:

“No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas úmidas e avermelhadas, as quais eram como duas joias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre […].

A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas… Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe devoto, a água gostosa que lhe dou.

O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmão de leite […]”.

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A Casa de Humberto de Campos em Parnaíba (PI) no ano de 2023

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No ano de 1899, Humberto de Campos Veras parte para São Luís do Maranhão a procura de emprego e se despede do seu amigo. A comovente descrição a seguir seria contada anos depois por ele:

“Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio. ‘— Adeus, meu cajueiro! Até a volta!’ Ele não diz nada, e eu me vou embora. Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em São Luís, homem-menino, lutando pela vida, enrijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: ‘Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças […]’. Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua ideia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, do quintal em que havíamos crescido juntos, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?”

No mês de setembro de 1901, dois anos depois, na vã expectativa de um emprego melhor em Belém do Pará, Humberto de Campos embarca em um navio da Companhia de Navegação a Vapor do Maranhão, de regresso, pela primeira vez, para aguardar o chamado para assumir o emprego, em Parnaíba, e abraçar o seu amigo:

“Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro-pálido para as pipiras morenas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal”.

O ilustre cajueiro, 127 anos depois de plantado

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No ano de 1903, Humberto de Campos, carregando os seus dezesseis anos de idade, embarca no porto da Amarração, em Parnaíba, rumo a Belém do Pará, em busca de melhores condições de vida:“Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste: — Adeus, meu cajueiro!”

No mesmo ano de 1903 ou no ano seguinte, Humberto de Campos, em seu segundo regresso, agora muito doente, vindo de Belém do Pará, desembarca no Amarração, em Parnaíba: “O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo. ‘— Meu cajueiro, aqui estou!’. Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem: ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono… Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco… Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, embaixo, a vasa e a podridão!”

José Almeida Pereira em julho de 2023, sentado à sombra do cajueiro plantado pelo menino Humberto de Campos no ano de 1896

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Por volta do ano de 1906, Humberto de Campos, com a sua saúde parcialmente recuperada, resolve retornar a Belém do Pará e se despede de Parnaíba e do seu amigo de infância, dessa vez, segundo ele mesmo, para sempre. Um já estava com vinte anos de idade e o outro, com a metade disso: “— Adeus, meu cajueiro! E lá me vou outra vez, e para sempre, pelo mundo largo, onde hoje vivo, como ele, com os pés na lama, dando, às vezes, sombra aos porcos, mas, também, às vezes, doirado de sol lá em cima, oferecendo frutos aos pássaros e pólen ao vento, e, no milagre divino do meu sonho, sangrando resina cheirosa, com o espírito enfeitado de flores que o vento leva, e o coração, aqui dentro, cheio de mel, e todo ressoante de abelhas…”

Outras considerações

Humberto de Campos Veras trabalhou no comércio, durante a sua juventude, nas cidades de Parnaíba (PI), São Luís (MA) e Belém (PA). Nessa última, chegou a ser colaborador e redator dos jornais Folha do Norte e Província do Pará. Em 1912, foi embora em definitivo para o Rio de Janeiro, onde exerceu diversos empregos, mas se destacando como jornalista e escritor. Era um autodidata assumido e voraz leitor. Faleceu em 5 de dezembro de 1934 naquela cidade, quando tinha acabado de completar os seus 48 anos de idade, e deixava uma viúva (Catarina Vergolina de Campos), três filhos (Henrique, Humberto e Maria de Lourdes), uma extensa obra literária e o seu nome inscrito no panteão da glória como um dos grandes escritores brasileiros.

A maioria dos seus biógrafos, mal informados, continua ignorando a presença do consagrado escritor maranhense na cidade de Parnaíba, no Piauí, justamente naquela acolhedora urbe onde ele recolheu tantas histórias para as contar, anos mais tarde, na sua obra mais célebre (Memórias) e, principalmente, descrever um dos mais emocionantes capítulos da sua trajetória de vida pessoal e de homem de letras, que foi a sua relação de afeto para com um cajueiro (Anacardium occidentale L.), o amigo de infância plantado por ele no quintal da casa da sua genitora no distante ano de 1896, portanto, há 127 anos. Aliás, o cajueiro é uma das raras espécies de plantas cultivadas genuinamente brasileira, no caso, nordestina, ou como os botânicos preferem dizer, é uma planta nossa, “indígena”. Diferentemente da maioria, como a mangueira (Mangifera indica L.), o coqueiro (Cocos nucifera L.) e a laranjeira (Citrus sinensis L.), entre outras, cujos centros de origem são o outro lado do mundo, principalmente a Ásia, daí serem chamadas de “plantas exóticas”.

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No mesmo ano do falecimento de Humberto de Campos, por coincidência, o seu primo Mirocles de Campos Veras (1890-1978), filho do tio Emídio Gomes Veras, quatro anos mais novo do que o escritor e colega dele de peraltices, quando ambos eram crianças, nas ruas de Parnaíba, iniciava o mandato como prefeito do município o qual exerceu até o ano de 1945. Mirocles fora o que se poderia chamar de “o primo rico”, mas ele nunca se acomodou com isso. Tornou-se médico obstetra, político e filantropo, conquistando com o seu trabalho incansável a fama e o respeito da população de Parnaíba e do Piauí. Fora da iniciativa dele, portanto, no ano de 1941, como consta em uma das placas de mármore no Jardim e Cajueiro Humberto de Campos, a emocionante homenagem prestada ao primo e escritor nascido nas fímbrias dos atualmente badalados Lençóis Maranhenses.

Apenas para melhor referenciar na linha do tempo, como monumentos históricos do Piauí, o Cajueiro de Humberto de Campos foi por ele plantado no mesmo ano em que na cidade de Parnaíba foi fundado o tradicional Hospital da Santa Casa de Misericórdia e, dez anos depois, os Colégios Diocesanos de Parnaíba e de Teresina, sendo estes dois últimos por iniciativa de D. Joaquim Antônio de Almeida (1868-1947), o primeiro bispo do Piauí.

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Passados todos esses anos, há de se reconhecer e louvar o meritório trabalho das autoridades locais de Parnaíba, notadamente da Prefeitura Municipal, em manter aceso o interesse pela preservação da Memória do consagrado homem de letras brasileiro que foi Humberto de Campos Veras, de cuja obra, para um povo que ama a sua história e as suas tradições, o Cajueiro plantado por ele em Parnaíba continua sendo um símbolo. Para a verdade histórica, em relação ao Jardim e ao Cajueiro de Humberto de Campos, a preservação do Monumento parece estar seguindo a contento. No entanto, já não se podendo dizer o mesmo quanto à Casa construída em meio a tantas dificuldades pela mãe do escritor a qual abrigou a sua família durante tantos anos na cidade de Parnaíba. Assim, a modesta Casa de Humberto de Campos pede socorro e acena por melhorias junto aos poderes públicos e aos setores empresariais!… Como se explicar que uma Casa histórica seja menos relevante do que o seu Quintal? Ainda que seja o seu Quintal o mesmo cômodo doméstico que abriga generosamente há 127 o último amigo de infância de Humberto de Campos?

 * Residente em Teresina (PI), José Almeida Pereira é engenheiro-agrônomo, pesquisador da Embrapa e historiador diletante.

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