[Editada por: Marcelo Negreiros]
O debate sobre o novo patamar recorde do fundo eleitoral e do fundo partidário – que juntos devem alcançar cerca de R$ 6,4 bilhões em 2026 – tem sido dominado por uma interpretação de cunho fundamentalmente moral. Para muitos analistas, os partidos viraram “empresas bilionárias” controladas por caciques pouco transparentes; o mecanismo reforça assimetrias entre siglas grandes e pequenas; e, na ausência de regulação rigorosa, os recursos alimentam concentração de poder e aumentam o risco de mau uso.
Essas críticas não são infundadas. Mas são insuficientes. Ao focar exclusivamente na dimensão moral da decisão, perdem de vista o que talvez seja o aspecto mais importante: os incentivos institucionais que levam os próprios parlamentares a inflar o financiamento público da política.
Proponho um contraponto analítico baseado em um clássico da ciência política: Barry Weingast e William Marshall (1988), em “The Industrial Organization of Congress; or, why legislatures, like firms, are not organized as markets”. Nesse artigo seminal, os autores mostram como, em certos contextos, agentes racionais têm incentivos para substituir o mercado por arranjos institucionais menos incertos e menos custosos. Assim como empresas existem para reduzir custos de transação que inviabilizariam trocas no mercado, legisladores podem criar instituições para reduzir riscos do “mercado eleitoral”.

Plenário da Câmara: no Brasil, quase um terço dos deputados perde o mandato a cada ciclo Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados
O mercado eleitoral brasileiro é muito arriscado. A intuição central do modelo de Weingast e Marshall é simples: quando o ambiente é excessivamente incerto, competitivo e repleto de problemas de informação, as trocas no “mercado político” podem falhar. É justamente o caso do Brasil.
Diferentemente dos Estados Unidos — onde a taxa média de reeleição na Câmara é de 93% (1964–2024) — o Brasil é um dos sistemas eleitorais mais voláteis do mundo. Nos últimos dez anos, as taxas de reeleição foram: 53% em 2014, 47% em 2018 e 55% em 2022. A média histórica gira em torno de 63%, ou seja, mais de um terço dos deputados perde o mandato a cada ciclo.
Essa instabilidade decorre diretamente do sistema proporcional de lista aberta, que cria competição interna e externa simultâneas, incentiva campanhas personalistas, fragmenta o eleitorado e torna as redes locais de interesse ainda mais decisivas. Os parlamentares não são “funcionários do partido”; são representantes de conexões altamente descentralizadas de interesses locais.
Nesse cenário, depender exclusivamente de recursos privados ou da imprevisibilidade do mercado político é um risco elevado – quase equivalente a um empreendedor depender só da sorte.
A leitura moralizante sugere que o fundo cresceu por ganância, oportunismo ou fisiologismo. Mas Weingast e Marshall permitem enxergar algo mais estrutural. Campanhas personalistas apresentam problemas de observabilidade e medição: é difícil aferir esforço, desempenho ou mérito. Quando recursos são distribuídos por critérios de “mercado”, surgem risco moral e seleção adversa. Partidos tampouco conseguem monitorar todas as transações entre candidatos, cabos eleitorais, provedores e eleitores – o que cria espaço para comportamentos oportunistas. E cada candidato conhece melhor seus custos e ativos políticos do que os líderes partidários, inviabilizando alocações eficientes via mercado interno.
Em resumo: o mercado eleitoral brasileiro é muito arriscado. E o que legisladores fazem quando um mercado funciona com incerteza? Criam instituições para reduzi-lo ou substituí-lo.
É exatamente aqui que entram os fundos eleitoral e partidário. Quando o ambiente gera riscos altos demais, agentes racionais procuram institucionalizar mecanismos de proteção. Weingast e Marshall mostram como legisladores criam regras, estruturas e rotinas que reduzem a incerteza, estabilizam trocas e permitem que cooperem de modo sustentável.
No Brasil, os fundos públicos cumprem funções que, do ponto de vista dos parlamentares, são racionais: reduzem a incerteza financeira das campanhas; diminuem a desigualdade entre redes locais ricas e pobres; padronizam minimamente os insumos da competição; criam colchões de segurança contra o risco de derrota; tornam previsível a oferta de recursos no tempo.
Não se trata apenas de “privilégio” ou “ganância”: trata-se de gestão de risco eleitoral.
O paradoxo é que mecanismos racionais também podem gerar efeitos indesejáveis. A teoria não justifica a ausência de transparência nem legitima o poder desmedido das lideranças partidárias na alocação dos recursos. Pelo contrário: a mesma lógica que explica a criação desses instrumentos também exige instituições que mitiguem custos colaterais, como concentração de poder, opacidade e captura interna.
Mas ignorar a racionalidade institucional por trás da decisão significa também ignorar o problema real: o mercado eleitoral brasileiro é estruturalmente falho e extremamente caro. O aumento dos fundos eleitorais e partidários não é apenas uma expressão de “abusos” ou “privilégios corporativos”. Ele é, em larga medida, um produto da lógica racional de legisladores atuando em um dos ambientes eleitorais mais incertos do mundo.
Se queremos reduzir o tamanho dos fundos – ou melhorar sua governança – precisamos enfrentar as causas institucionais que tornam o mercado eleitoral tão arriscado. Enquanto o risco estrutural permanecer alto, os incentivos para inflar mecanismos de proteção financeira continuarão existindo. Entender essa lógica é um passo essencial para qualificar o debate.
[Por: Estadão Conteúdo]
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