[Editada por: Marcelo Negreiros]
Imagine dois cenários hipotéticos.
Na Alemanha, um agente público de uma grande estatal percebe que há pagamentos suspeitos a fornecedores ligados a políticos locais. Preocupada com a integridade da instituição e com os recursos públicos, ela procura o canal oficial de denúncias. Em poucos dias, sua identidade é mantida em sigilo, ele recebe proteção contra eventuais retaliações internas e tem garantias legais de que não será demitido nem perseguido. Se houver represálias, a lei inverte o ônus da prova: cabe à estatal demonstrar que não houve discriminação.
No Brasil, a situação seria bem diferente. Um agente público que observa fraude em licitações pode denunciar ao seu superior ou ao Ministério Público. Na prática, ele se expõe a riscos pessoais e profissionais: a perda do emprego, ações judiciais movidas contra si, difamação, isolamento no ambiente de trabalho. Não há garantias claras de preservação de sua identidade, nem mecanismos robustos de compensação ou apoio. A coragem de denunciar pode se transformar em sentença de exclusão. Os últimos 20 anos estão repletos de histórias sem um final feliz para denunciantes.
Essa comparação não é meramente retórica. Mostra como a ausência de uma lei de proteção ao denunciante de boa-fé coloca o Brasil em desvantagem no combate à corrupção, minando a confiança nas instituições.
Apesar da centralidade do tema em países da União Europeia, no Japão e nos Estados Unidos, o Brasil ainda carece de uma legislação abrangente. O que existe são normas esparsas e insuficientes, possivelmente aprovadas somente porque teriam um impacto limitado. A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) tipifica como ilícita a ocultação de informações ou a imposição de sigilo para encobrir irregularidades, mas é voltada para a responsabilização do agente público, não para a uma proteção efetiva ao denunciante. O Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) possibilitou a recompensa financeira para quem colaborar com investigações, mas não estabeleceu um regime sistemático de proteção.
Em outras palavras, há peças soltas, mas não um arcabouço legal capaz de garantir segurança efetiva ao denunciante. As lacunas normativas brasileiras são evidentes e afetam diretamente a decisão de alguém denunciar irregularidades.
Há seis pontos que precisa sem endereçados pelo Congresso Nacional em qualquer lei que trate da proteção dos denunciantes:
- Ausência de proteção contrarretaliação – não há lei que impeça, de forma clara, demissão, rebaixamento de cargo ou perseguições administrativas contra denunciantes.
- Falta de anonimato efetivo – canais de denúncia muitas vezes não asseguram confidencialidade, expondo o denunciante à identificação.
- Ônus da prova invertido inexistente – cabe ao denunciante provar que sofreu retaliação, quando o correto seria obrigar a instituição acusada a demonstrar que não houve discriminação.
- Risco de responsabilização civil ou penal – mesmo denúncias feitas de boa-fé podem levar a processos por difamação, calúnia ou danos morais.
- Ausência de incentivos financeiros adequados – o modelo de recompensa previsto no Pacote Anticrime é tímido e não cobre a maioria dos casos em que a denúncia resulta em recuperação de recursos públicos.
- Falta de apoio psicológico e social – não há mecanismos de suporte ao denunciante, que muitas vezes sofre isolamento e danos reputacionais.
Essas falhas não são apenas teóricas: elas têm consequências práticas devastadoras, na medida em que desencorajam justamente quem poderia colaborar para prevenir ou interromper esquemas de corrupção.
A experiência internacional mostra que leis de proteção ao denunciante fortalecem a cultura de integridade. Nos EUA, desde a década de 1980, o False Claims Act estimula denúncias de fraudes contra o governo, com proteção jurídica e recompensas que chegam à parte dos valores recuperados. Na União Europeia, a Diretiva de 2019 obriga os países-membros a adotar salvaguardas para denunciantes em setores público e privado.
Por outro lado, o Brasil permanece com instrumentos fragmentados, que não oferecem segurança suficiente. Em um país marcado por escândalos recorrentes de corrupção, essa ausência é sintomática: prefere-se punir o corrupto depois que o dano se consumou, em vez de criar condições para que a irregularidade seja identificada e interrompida desde o início.
Para que haja avanço na prevenção e no combate à corrupção, é necessário enfrentar o problema de frente: adotar uma lei nacional de proteção ao denunciante de boa-fé. Há bons projetos em discussão no Congresso Nacional, mas eles não avançam há anos. Não se trata de criar privilégios, mas de reconhecer que denunciar é um ato de coragem cívica que deve ser protegido.
Enquanto essa lei não existir, o Brasil seguirá sendo onde o medo fala mais alto do que a ética e onde potenciais aliados da sociedade na luta contra a corrupção permanecem em silêncio.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.
[Por: Estadão Conteúdo]
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