[Editada por: Marcelo Negreiros]
O Brasil, nas últimas décadas, consolidou um robusto arcabouço legal e tecnológico em prol da transparência pública. Leis como a de Responsabilidade Fiscal e a de Acesso à Informação estabeleceram as fundações básicas, enquanto ferramentas como os Portais das Transparências dos Governos Federal, Estaduais e Municipais tornaram-se referências internacionais na divulgação de dados governamentais. Tais avanços são inegáveis e permitiram que sociedade civil, imprensa e órgãos de controle investigassem desde despesas com cartões corporativos até a execução de complexos contratos públicos, gerando impactos concretos.
Contudo, a experiência prática e a análise aprofundada revelam um paradoxo crítico: a alta disponibilidade formal de informações convive com uma baixa capacidade de apropriação e uso desses dados pelo cidadão comum como forma de participação social. É a constatação de que abrir as portas do Estado é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que a transparência se converta em uma arma potente e sustentável contra a corrupção e a favor da boa governança, ela precisa evoluir de um exercício de disponibilização de dados para uma política de efetiva compreensão cidadã, engajando a sociedade no processo decisório das políticas públicas.
A avaliação de mecanismos globais, como a do instrumento Open Budget Survey da organização não governamental International Budget Partership, ilustra com precisão o desafio brasileiro. O país consistentemente alcança altas pontuações no índice de Transparência Orçamentária, refletindo a publicação abrangente dos documentos governamentais. No entanto, na mesma pesquisa, nossa nota no quesito Participação Pública é extremamente baixa. Essa disparidade alarmante aponta para a falha central do modelo atual: a informação existe, mas não dialoga com a sociedade. Entre as razões apontadas, destacam-se as seguintes:
- Complexidade Técnica, os dados orçamentários e financeiros disponibilizados ainda se apresentam na sua grande maioria, por natureza, áridos e complexos, sendo apresentados em formatos brutos e linguagem técnica, o que se tornam praticamente incompreensíveis para o não especialista;
- Limites das Ferramentas, pois tais ferramentas, mesmo no caso dos portais informacionais avançados, ainda enfrentam desafios de interoperabilidade, padronização e, principalmente, de traduzir a vastidão de dados em conhecimento acessível para o público; e
- Opacidade Estrutural, tendo em vista a existência de mecanismos que dificultam o rastreamento de recursos, como o chamado “Orçamento Secreto”, verifica-se a ocorrência de tentativas para minar a transparência formal promovida, dificultando o controle efetivo e a responsabilização dos autores de possíveis desvios às regras orçamentárias.
Dessa forma, o efeito observado é um sistema que, apesar de formalmente transparente, gera pouco engajamento. Assim sendo, a transparência promovida no âmbito do processo fiscal brasileiro corre o risco de se tornar um exercício de conformidade legal, sem gerar a pressão social necessária para aprimorar a gestão pública e coibir desvios relacionados com a corrupção, por exemplo.
Neste contexto, superar esse paradoxo exige um deslocamento do foco: da quantidade de dados publicados para a qualidade da comunicação e a capacidade da sociedade de utilizar essa informação. Um modelo conceitual-prático inovador propõe que a transparência fiscal só se torna efetiva quando fundamentada em premissas indissociáveis, como:
- Acessibilidade e Compreensibilidade, significa que a prioridade deve ser a produção e divulgação de informações em formatos claros, com linguagem acessível e visualizações intuitivas, ou seja, precisa-se investir na “tradução” dos dados para múltiplos públicos, garantindo que a informação gere entendimento, e não confusão de dados;
- Oportunidade e Relevância, a informação precisa estar disponível em tempo hábil para que cidadãos e organizações possam analisar o cenário e intervir nos processos decisórios, e não apenas auditar fatos consumados, promovendo, assim, o valor transformador da transparência proativa, sem focar apenas na transparência reativa; e
- Capacitação para o Uso, uma vez ser imperativo que o Estado invista em programas de educação fiscal e cívica, habilitando indivíduos e organizações a interpretar dados, entender os ciclos de políticas públicas e transformar informação em conhecimento acionável.
Cabe destacar que essa visão de transparência efetiva não opera em isolamento. Ela é o catalisador de um sistema interdependente de integridade. A informação transparente e compreensível serve como base para que a sociedade civil organizada, a imprensa e o cidadão comum possam monitorar, questionar e demandar ações, configurando um engajamento cívico qualificado.
No entanto, esse engajamento cívico qualificado, por sua vez, gera resultados concretos quando encontra instituições democráticas — órgãos de controle, Judiciário, Legislativo — que sejam independentes, capazes e responsivas para processar as demandas sociais, investigar irregularidades, aplicar sanções e promover correções. Infelizmente, se as instituições são fracas ou morosas, as denúncias bem fundamentadas se perdem, gerando frustração e minando a confiança tanto na transparência quanto na participação.
Portanto, a interação dinâmica e o reforço mútuo entre a transparência acessível, a participação qualificada e a resposta institucional criam um ciclo virtuoso de accountability. A transparência fiscal efetiva alimenta a participação, que legitima e pressiona as instituições, que, ao agirem, fortalecem a confiança no sistema e incentivam ainda mais transparência e engajamento. Espera-se, assim, a construção de um ecossistema de integridade, onde a abertura de dados se traduza, de fato, em controle social, melhoria da gestão e redução da corrupção, com a construção de pontes que efetivamente conectam o Estado ao cidadão.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
[Por: Estadão Conteúdo]
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